Sábado

Ramana Bispo Mendes
Revista Mormaço
Published in
2 min readJun 20, 2022
Eu e meu pai há mais de 20 anos

Siri, camarão, caranguejo. Canta o pescador. A voz é rede de arrasto no mar de deslembranças. Às sextas, pela manhã, vem de Saubara. Caminha, nos mesmos horários, pela rua onde cresci. Empurra a galinhota de pescados. Puxa para superfície memórias. Dos meus 8, 10 ou 12 anos. Os fragmentos me tocam diferentes vezes de forma semelhante. Não saberia dizer qual pedaço traçou as marcas do sol cravado em meu peito. O sol que alumbra a feição de meu pai ao me encontrar em qualquer canto da casa e me oferecer um afago.

一 Quer caranguejo?

Compra. Lava, limpa, raspa. Pensa. Lava, limpa, raspa o pelo dos machos com faca. Uma observação. Mainha me orienta. Pila o tempero. Raspo maxixe. Pego Jiló. Joga quiabo na panela de pressão. O ritual se repete, embola, mistura e costura a rede do tempo. Passado e presente.

Os anos correram. As configurações mudaram. Meu pai segue a oferecer seu afago. Tenho uma filha no colo. Ou ela me leva nos braços além dos mares que não consigo atravessar sozinha?

一 Não sei porque a gente passa tanto tempo planejando o futuro se, quando ele chega, o presente é diferente.

一 Porque você está dizendo isso?

一 Nunca me imaginei sendo avô, não queria sentir o tempo passando com a soma de novas gerações e, neste instante, é tão normal ouvir essa palavra.

Tive essa conversa com meu pai ontem. Pouco antes de comprar o caranguejo ele me ofereceu essa corda de não-ditos. Gosta de ser avô. Ter uma neta de duas mães. Duas mães que sequer são um casal. Um não-casal pouco disposto a se fazer entender. Com os braços abertos para o amor. Amor que temi não receber da primeira família.

Hoje é sábado. Estou no quintal, à beira da pia revivendo o ritual. Mainha está lavando algumas roupas. Dizendo do jeito dela o quanto se preocupa com a neta. A neta brinca numa bacia de alumínio aguada de afetos. Na caixa de som toca reggae. O caranguejo no fogo tem o gosto desses sábados. Pesca do passado. Preparo de um presente farto. O reggae é o som das vezes nas quais meu pai me levou à escola entre silêncios e melôs maranhenses sussurrados pelo som automotivo. E o sol gravado em meu peito alumbra cenas de futuros impossíveis agora reais.

--

--

Ramana Bispo Mendes
Revista Mormaço

Escrevo com certeza sobre coisas que nem sei direito e pessoas parecem gostar disso