Sanches, o gato.

Lucas Belo
Revista Mormaço
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3 min readDec 16, 2021
“No parking cat”por Franco Folini is licensed under CC BY-SA 2.0

Adotamos, por conta própria, um gato para o nosso estacionamento. Sanches, na verdade, como todos da sua espécie, não precisava de qualquer formalidade. Ele deixou claro o que estava por acontecer quando exigiu que eu abrisse a torneira para que pudesse beber água corrente. O espaço, assim como as sombras debaixo dos carros, era sua moradia e por que não? Em pouco tempo, nós, os manobristas de cada turno, passamos a colaborar para ração, em seguida para o patê porque queríamos agradá-lo e decidimos, em conjunto, dar a ele o sobrenome do nosso patrão.

Éramos três para cada período do dia. Tão assíduos e comprometidos quanto a própria Terra em sua natureza giratória, isso porque ninguém podia faltar nem por doença — em nossa natureza humana e circunstancial. Quem imagina a noite no lugar do dia, senão um lunático? Foi o que Sanches falou quando não pude ir ao enterro de um grande amigo.

Contudo, o gato é boa companhia e ajuda a vencer as oito horas de trabalho longe de casa. Eu tomo conta dos carros, ele toma conta de mim com seus olhos de poço profundo prestes a me inundar. Se fossem olhos de gente de certo guardaria muitas opiniões dentro. Quando estou tomando café na copa, que é banheiro e vestiário também, é como se ele se gabasse, lá de cima do armário, por ter os muros, o entre as pernas da manhã, da tarde e da noite, além do almoxarifado. Ele me faz pensar muito.

No começo do mês recebemos um aviso de Sanches por celular, informando a instalação de câmeras de segurança por todo o estacionamento. Não demorou até que chegasse a empresa contratada e pendurasse os grandes olhos por todo lugar, inclusive dentro da guarita, apontados sistematicamente para a caixa registradora. A primeira semana foi a mais angustiante, temíamos que o gato fosse descoberto e, por consequência, expulso da sua própria casa. Mas o tempo foi se estendendo, enquanto o gato permanecia imperceptível à vigia perversa de Sanches. As câmeras, também, depois de um tempo camuflaram-se no cinza e preto do ambiente, de maneira que deixamos de percebê-las, voltamos os pés às mesas, inclinamos as costas longe do ângulo noventa e Sanches dormia em cima de tudo.

Assim, despreocupado, recebi a visita inesperada do patrão, que entrava feito relâmpago no estacionamento, inflando o sossego até explodir, com suas milhares de recomendações irrealizáveis sobre poças d’água e uniformes mal passados. Eu o seguia pelos vãos e corredores respondendo, na medida do possível, suas indagações e caprichos, enquanto rezava para que Sanches, o gato, não saísse do buraco onde estava. Ele, o patrão, explicava que estava lá para conversar comigo a respeito de algo que tinha notado nas câmeras de segurança. Era sobre um cliente mensalista que trazia consigo, todos os dias, volumes muito suspeitos, ora em caixas de papelão, ora em sacolas pretas. Eu o conhecia bem, era Maicon, expliquei que ele vendia peças de motocicleta na Santa Ifigênia e que era dos poucos clientes que contribuía para a caixinha de natal dos manobristas. Sanches o acusou de ser ladrão e afirmou conhecer camaradas daquela categoria há muito tempo. De agora em diante, eu deveria impedir sua entrada e permanência, assim como de seus semelhantes. Quando eu protestei que não podia discriminar os clientes, tampouco barrar suas entradas, ele mencionou o gato com ironia, arrematando a conversa, “se eu não estabelecer regras, em breve, vocês abrigarão mendigos e prostitutas no meu estacionamento”.

Sanches, o gato, não parecia aliviado por poder ficar no estacionamento, mas eu estava — mesmo depois de ter de impedir a entrada de Maicon. Agora, a ração estava por conta do patrão. O bichinho e eu tínhamos muito em comum. Sempre tivemos, ele sabia.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.