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Thaís Campolina
Revista Mormaço
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3 min readSep 2, 2024
Acervo pessoal — Thaís Campolina

posso escorregar no banho e bater a cabeça no box do banheiro. morrer pelada, vendo um labirinto de miolo, condicionador e sangue se diluir na água morna. posso esquecer de levar o lixo para fora e em dois dias encontrar larvinhas vivendo tranquilamente na área. com um passo em falso, posso cair na escada e acabar batendo a cabeça na pior quina do prédio. alguém pode me matar por engano, porque eu me perdi e fui parar no lugar errado na hora errada. um motorista distraído pode me pegar de surpresa no meio da rua, frear bruscamente e morrer de susto, enquanto eu grito aaaaaaaaaaaaa sem nunca ser atingida. posso comer uma broa, me engasgar e tossir até morrer. posso estar com a glicose descontrolada e continuar comendo doce sem nem imaginar o risco que corro a cada trufinha que decido mandar pra dentro. não posso esquecer de dar comida para os gatos. posso ter uma dívida crescendo exponencialmente sem nunca saber disso. aquela vez que comi uva depois de tirar o mofo de seus galhos com água pode me matar de botulismo. posso ficar sete dias sem dormir e me acabar zumbi assim. posso perder um dente, depois outro dente, depois mais outro e, com inflamação dos três buracos, sentir uma febre tão alta e uma alucinação tão intensa que eu acabaria arrancando todos os meus outros dentes por conta própria em um surto. posso ver alguém morrer na minha frente sem poder fazer alguma coisa para ajudar. posso esquecer de fechar a janela do apartamento e um marimbondo cavalo entrar em casa sem que eu perceba e me ferroar de madrugada. posso ter um branco e não lembrar que tenho alergia a camarão e me esbaldar em bobó até a glote se tampar. essa fincada no peito pode ser ataque cardíaco e não gases como todo mundo está cansado de dizer que é. posso levar um choque ao colocar meu celular para carregar. o próximo avião que eu entrar pode cair. posso dormir tempo demais e acordar fraca e cair de cabeça no vaso ao levantar da cama apertada para fazer xixi. posso ser presa porque uma homônima cometeu um crime horrível perto da minha casa. posso frear na estrada para salvar um cachorro e capotar meu carro trinta e quatro vezes. posso esquecer de desejar feliz aniversário pra minha mãe. essa dor de cabeça estranha que eu sinto nesse exato momento pode ser na verdade um AVC. posso não lembrar de acordar para ir ao trabalho e perder o emprego, porque me ligaram, ligaram e ligaram e eu não percebi, porque nunca tiro o celular do modo avião. posso confundir sexta com sábado, desligar o despertador, acordar atrasada, sair de casa desesperada e ser atropelada por um ônibus lotado. posso ter um vizinho assassino estuprador stalker que cismou comigo por causa de um bom dia. posso esquecer de ir ao médico ginecologista mais um ano. posso trombar em um poste e morrer eletrocutada por um fio solto. posso sair para ir na padaria e ser atacada por um homem em plena luz do dia. posso ter uma doença silenciosa que está me matando sem eu saber. posso tomar meu remédio errado. posso entrar em combustão espontânea. não posso esquecer de tomar o ansiolítico de novo. posso dormir dirigindo sem nem estar cansada. posso falar demais e ganhar um calo nas cordas vocais. posso me imaginar brincando de ioiô com a desgraça. o ioiô vai e volta. vai e volta. vai e volta. até que se embaraça nos meus dedos. o ioiô me aperta, me prende a circulação. o ioiô arruma um jeito de me fazer bater as botas de uma maneira muito mais ridícula que eu sequer fui capaz de imaginar.

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Thaís Campolina
Revista Mormaço

leitora, escritora e curiosa. autora de “eu investigo qualquer coisa sem registro” e “Maria Eduarda não precisa de uma tábua ouija” https://thaisescreve.com