se eu fosse eu

Ana Carolina
Revista Mormaço
Published in
3 min readAug 1, 2023
arte de Regiany Maia

Ontem eu só precisava de colo. Na verdade, precisava de ouvidos e ela me deu mais que isso: me deu o conforto das palavras dela e a saudade das minhas próprias porque não consegui falar, só chorar.

Terminou o dia me dizendo: escreva.

Se eu fosse eu, provavelmente faria o que ela falou mas não consigo mais, ultimamente não estou muito do meu lado. É assim que me abstenho, mais uma vez, do desabafo simbólico da minha língua, do meu peito e da minha carcaça com algumas palavras, simples desenhos (rabiscos?) no papel.

Na realidade, se eu fosse eu, na semana passada, quando seguraram a minha mão perguntado “o que tá acontecendo?” eu teria respondido “muita coisa, menos isso”, e quando digo “isso” me refiro a mim mesma.

Se eu fosse eu, jamais vestiria aquela echarpe mal costurada que desconfortavelmente esquenta meu corpo e consegue esconder desejos, demandas e necessidades. A echarpe esquenta e o calor aquece mas é um calor que queima como gelo.

Essa echarpe me ensinou que calor não é necessariamente sinônimo de segurança e muito menos conforto porque cá estou eu, morrendo de calor de mim e ardendo de frio do mundo. Me calo e esse calo é o primeiro fio que puxo: o responsável por me descosturar inteira. Me desfaço e consigo ver: se eu fosse eu, nunca deixaria isso acontecer.

Se eu fosse eu, faria questão de terminar muitas coisas, mas como já disse: não sou mais, acho que desde o ano passado as coisas mudaram e eu me deixei na mão. Ano passado? Talvez antes disso, se posso ser sincera. Se posso ser ainda mais sincera (coisa que eu sendo eu, seria com mais frequência): acho que nunca fui eu de verdade. Antigamente era mais fácil de fingir, tentar me enganar com a fantasia de que eu sou eu.

Hoje a realidade ri da minha cara.

Queria poder voltar para esses dias antigos e organizar a minha vida inteirinha, colocar pingos nos is, circunflexos e crases onde fosse necessário, questionar a necessidade real de alguns travessões e sublinhar a necessidade urgente de outros.

No fim das contas, se eu fosse genuinamente eu, eu não sei quem eu seria. Conviver com essa dúvida seria um grito de liberdade e não esse sussurro agonizante que me angustia a existência.

Se eu fosse eu, seria meus medos, minhas certezas e teria o nível de humanidade animal capaz de firmar o corpo. Seria fácil de reconhecer essa totalidade dualista, paradoxal e ambivalente que me compõe e assim, eu seria capaz de assumir meu nome como interrogação.

Reparo que cheguei até aqui e decido que será o último parágrafo. Sorrio. Nada mais eu textos um pouco herméticos que não concluem muita coisa (só uma ou duas dúvidas).

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