Sem saída

Thaíla
Revista Mormaço
Published in
4 min readApr 1, 2024
São Paulo — 2023

Foi logo na primeira vez que saiu para procurar um lugar para morar que Carlos encontrou essa rua, a minha rua.

A história de hoje é sobre ele, um tipo que você com certeza já conheceu alguma vez na vida. E a rua parecia perfeita, residencial e tranquila, mas ao mesmo tempo perto o suficiente do trabalho, dava pra ir e voltar andando. Ficou tão feliz que nem se perguntou o porquê do aluguel ser tão baixo (risos), apenas agradeceu e ficou satisfeito pela oportunidade.

Eu moro aqui desde sempre, e confesso, tem mesmo uma localização impar. Bem no coração pulsante da cidade, mas escondida o suficiente para não chamar muito a atenção das construtoras. O que fez com que ainda tivesse suas casas protegidas dos tais empreendimentos smart que tanto assombram as cidades. E mesmo que cada vez mais vazias, as casas da minha rua, estavam tão preservadas que até alguns dos azulejos e pinturas eram originais. Tantas histórias que aqueles muros e jardins já testemunharam que gosto de pensar que criaram vida própria. E pensando bem, não é raro ouvir dos moradores que, as vezes, ao caminhar pela rua é possível sentir um arrepio que vem do nada, sobre pela espinha e deságua nas pontas dos dedos. Mas vai saber, nunca aconteceu comigo.

Carlos fechou contrato.

Uns meses depois de ter se mudado, em um dia de inverno em que o sol se pôs cedo demais, vislumbrei Carlos dobrando a esquina e dando de cara com o portão da primeira casa aberto. Escancarado. Todo mundo sabia que ninguém morava ali, estava à venda há anos, mas nunca desenrolava; problema de herança; inventário, não saberia precisar nem se quisesse. Ninguém nunca foi visto saindo ou entrando naquela casa nos últimos 15 anos, seguramente. Mas ainda assim por várias vezes em algumas noites uma luz no segundo andar fica acesa horas a fio, mas é sempre o gato o único habitante visto, andando pelo parapeito da janela, às vezes irritado, às vezes entediado. Já até pensaram em denunciar pra prefeitura achando que tinha sido invadida.

Dois miados cheios de sofrimento e desespero.

Qual não foi a minha surpresa quando Carlos decidiu transpassar o portão aberto. Entrou na casa fazendo a maior quantidade de barulho possível. Não era o que eu faria, mas paciência, é sempre aquela história tu és responsável por aquilo que blá-blá-blá. Não deve ter encontrado nada, já que não demorou muito e o vi saindo pelo mesmo portão, que permaneceu aberto. Parecia tudo normal.

Assim que Carlos deu as costas, a luz da varanda se acendeu e algo definitivamente maior do que um gato se mexeu rápido em direção à saída. Mas Carlos já havia re-colocado o fone de ouvido, estava alheio novamente, e seguiu seu rumo em direção ao final da vida, quero dizer: da rua. Totalmente indiferente àquilo que, não havia dúvidas, o estava seguindo.

Durante todo o tempo, que pareceu uma eternidade mas que não durou 5 minutos, gosto de pensar que uma voz não deve ter saído da sua cabeça, dizendo insistentemente para olhar para trás; “dê a volta”; “saia correndo”, e pode até ser que ele tenha sussurrado isso em algum momento, não tenho certeza. Mas, se foi isso mesmo, Carlos deve ter encarado como aquela familiar sensação de alerta que todos temos ao caminhar durante à noite pelas ruas de qualquer cidade.

Ignorou, mas apressou o passo.

Eu pude ver de perto quando ele finalmente se aproximou do portão da sua casa. Mas aí já era tarde demais. Na mesma hora alcei seu ombro e puxei para trás. Um susto e tanto. Para ele, claro. Foi tudo muito rápido. Como um caranguejo: quebrei primeiro as pernas; abri a cabeça; suguei tudo por dentro.

Mas não tenho dúvidas que no lugar dele você olharia para trás naquele instante que a intuição pediu. Se Carlos fosse você talvez ele estivesse aqui no meu lugar, contando a história de como conseguiu fugir da coisa mais horrenda que já viu na vida, só por ter olhado para trás na hora certa, por ter corrido tão rápido que conseguiu chegar em um lugar iluminado a tempo, pediu ajuda, foi acolhido e nunca mais voltou naquela rua. Gosto até mais assim, na verdade, a carne fica com um gosto diferente quando está inundada pela esperança da salvação. Mas sim, como a minha rua, essa é uma situação sem saída, e em todos esses anos nenhum de vocês nunca teve a menor chance.

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Thaíla
Revista Mormaço

Baiana de Salvador, psicóloga de formação, psicanalista de desejo e escritora de gaveta.