Sem título, sem nada

Thaíla
Revista Mormaço
Published in
2 min readDec 15, 2023
Aviso na Entrada da Gruta da Lapa Doce — Chapada Diamantina, Salvador/BA

Me deparei com a página que insistia em permanecer desesperadamente vazia. Tanto já foi escrito sobre você, e inevitavelmente sobre mim também. Mas nunca sobre nós dois, nunca houve um “nós” apesar de você ter feito vários nós em minha vida. E hoje estou aqui, encarando o que daqui a umas horas será o seu obituário.

Digo de forma bem clichê que antes de você coloria tudo com tediosos tons de cinza. Logo eu que passei tanto tempo da minha vida implorando por uma brecha no real, uma frestinha que seja, pra tentar me libertar daquilo que eu, tão intensamente, desejava não desejar.

Aí você apareceu. Mas o nosso amor já nasceu embalsamado, e eu não sabia. Então desde os primeiros dias me permiti ser encantada por tudo que iríamos viver. Me apaixonei prontamente. Passou umas semaninhas e eu tinha uma música para os nossos melhores momentos. Planejei e sonhei.

Sempre desconfiei das pessoas que não trazem na vida o peso da morte, então quando me senti feliz de verdade, custei acreditar. Mas você apareceu bem a tempo de me fazer entender que para tomar certas decisões na vida, a certeza tem que ser tão grande que se confunde com o desejo, e só assim saberei qual é a escolha certa. Você foi escolha minha, e disso não me arrependo.

Para o dia de hoje precisei decidir várias coisas, ou escrevia, ou não escrevia, ou ficava, ou ia, ou mudava, ou morria. Ou isto, ou aquilo. Decidi morrer de um jeito diferente do seu. Matei quem queria ser quando estivesse com você. Porque só a partir dessa cisão com a vida que não foi nossa que, talvez, consiga uma reconstrução, mesmo que fragmentada, de quem eu era antes de tudo acontecer. Por enquanto permaneço sendo só um corpo operando de forma automaticamente caótica.

Quando te tiraram de dentro de mim ouvi de longe alguém no canto da sala de parto falando: Hora da morte 17h47.

Hoje reencontrei nas coisas que nunca foram suas um cheiro que me lembra você, e me abracei.

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Thaíla
Revista Mormaço

Baiana de Salvador, psicóloga de formação, psicanalista de desejo e escritora de gaveta.