Sequestradores de sonhos.

nilo nobre
Revista Mormaço
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7 min readJul 1, 2024
Johann Moritz Rugendas, Voyage Pittoresque dans le Brésil, 1835 (domínio público)

U’Ratak se escondia atrás dos arbustos e observava a movimentação no forte dos invasores. Havia muitas luas desde que aquele povo estranho se instalara em suas terras e desde então a ponta das tartarugas nunca mais foi a mesma.

Um soldado saia com um balde em direção à cacimba. No horizonte, nuvens carregadas anunciavam a chegada de um temporal.

O agora guerreiro Remambé apertou com força o cabo do machado de pedra quando o reconheceu. Aquele homem participou do extermínio de seus parentes nas margens do Mundahú. As memórias vinham como uma torrente junto da raiva.

Naquela ocasião, o jovem U’Ratak não foi morto por muito pouco. Estavam todos sossegando após o almoço quando um estrondo ecoou bem próximo deles. Os guerreiros correram para pegar seus machados de pedra e seus arcos, então uma sequência daqueles trovões se fez ouvir, como se o próprio O’Ticanbura tivesse descido dos céus, e alguns guerreiros caíram antes mesmo de alcançar suas armas.

Entre uma sequência e outra dos estampidos, U’Ratak conseguiu ver que não era uma divindade, eram homens brancos. Olhou para seus rostos, tentando entender a situação, mas um disparo explodiu num tronco de mofumbo ao lado de sua cabeça, espirrando estilhaços para os lados. Vários pedaços voaram em seu rosto e encheram seus olhos de lascas e poeira, fazendo-o cair quase cego em um barranco. Após juntarem as mulheres e crianças para venderem como escravos, os brancos não procuraram os corpos dos guerreiros.

Sem saber que era vigiado, o homem cavou a cacimba com as mãos para aumentar o volume de água e enfiou o balde.

U’Ratak lembrou dos dias que vagou pelas matas até chegar no acampamento principal. Não passou fome ou sede, pois conhecia os caminhos, mas a dor da perda de seus parentes e o medo de ser capturado ou morto pesaram muito mais que a exaustão da viagem.

Uma vez de volta ao grupo principal, o rapaz ficou sabendo sobre esta fortificação e, pela primeira vez, quis passar pelo rito do guerreiro. Os Remambé só consideravam guerreiros aqueles que provavam grande bravura em batalha contra os povos que lhes fossem hostis, mas nem todos eram obrigados a tomar parte na guerra. U’Ratak nunca quisera. Na verdade, tinha até um certo receio deles. Os mais ferozes e mais importantes eram também os mais sisudos e distantes, como se nunca estivessem presentes de fato. Até o apresamento de que escapara, U’Ratak queria mesmo era ser pescador. Remar sua canoa até o mar calmo e mergulhar para conquistar os grandes peixes no braço. Sonhava com o dia que aprenderia o costume de seu povo de desafiar os ferozes tubarões apenas com um pedaço de pau nas mãos.

Mas O’Tamok lhe dera um destino diferente. Os brancos invadiram seu território e a guerra o chamava. Aquele seria seu rito de passagem. E depois, mesmo se um dia ele ainda quisesse remar até o mar calmo, precisava retirá-los do caminho antes.

U’Ratak pôs a flecha no arco e esticou a corda. Olhou para a mata ao seu lado. Algumas dezenas de guerreiros Remambé aguardavam.

Respirou fundo.

O soldado voltava com o balde cheio quando a flecha zuniu no ar. Não teve tempo de reagir. O corpo despencou com a flecha atravessada no pescoço e logo a água do balde se misturava com o sangue que jorrava e com a areia da praia.

Na fortificação de taipa, um sentinela percebeu o ataque e logo soou o alarme.

Enquanto os soldados portugueses pegavam suas armas, os Remambé corriam para o forte.

Em campo aberto, os gritos de guerra e os silvos de flechas se perdiam com facilidade pelo vento litorâneo, agora mais forte pelo temporal que se aproximava. De dentro do forte, os disparos das espingardas ecoavam e logo eram também encobertos, mas seus projéteis oscilavam menos com o vento, e alguns dos Remambés caíam pelo caminho.

Os guerreiros do acampamento principal eram fortes e acostumados a nadar no mar, então aquele percurso nas areias da praia não era grande coisa, mas U’Ratak, que viera do acampamento do rio, não sentia da mesma forma. A cada passo, os pés afundavam e precisavam de força extra para impulsionar o corpo para frente, o ar vacilava em seus pulmões.

Um tiro derrubou um Remambé que corria ao seu lado, outro levantou um tufo de terra bem aos seus pés. Não tinha volta. Não podia ficar parado, nem dar as costas ao inimigo. O jeito era seguir em frente.

U’Ratak disparou duas flechas. Uma foi desviada pelo vento marítimo e passou longe do forte. A outra, ele tentou compensar a variação e atirou para o lado, quase como para errar de propósito. Desta vez a seta cravou entre duas tábuas da janela do forte e um grito ecoou lá dentro.

Bastou o tempo entre uma saraivada e outra para os Remambés chegarem nas paliçadas que cercavam o forte. U’Ratak escorou-se em uma madeira e olhou para trás. Vários de seus parentes mortos ou feridos. Percebeu que não conseguia ouvir os gritos de dor de seus companheiros. O vento da praia abafava tudo, inclusive o tiro que resvalou na madeira às suas costas, enfiando uma lasca pontiaguda em suas costelas.

Gemeu enquanto tirava o espeto das costas e o sangue corria quente por sua cintura, manchando os machados de pedra.

Disparou suas últimas três flechas em sequência, para fazer os inimigos se esconderem. Puxou um machado da cintura e correu para dentro.

A chuva veio com força. Os pingos eram tão grossos que doíam na pele, mas pelo menos o chão molhado se tornava mais estável.

Alguns dos guerreiros já estavam forçando a entrada pelas janelas, mas os soldados os espetavam com suas espadas, fazendo alguns caírem com cortes profundos, onde quer que o aço alcançasse.

Não bastasse isso, os atiradores permaneciam na retaguarda, disparando por cima dos ombros dos defensores. Algo precisava ser feito. U’ratak lembrou-se de que os paus de fogo precisavam de um pó específico para disparar. Se pelo menos ele conseguisse atear fogo lá dentro, a vitória estaria garantida, mas na chuva seria impossível.

Então teve uma ideia, se o fogo não servia, talvez a chuva ajudasse. Começou a contornar o forte. Ao passar por uma janela, um cano de espingarda estava para fora. Esgueirou-se encostado na parede, segurou a arma e puxou com força, arrastando com ela o soldado desavisado que assistia o combate do outro lado. Quando pelo menos metade do homem estava fora da janela, o machado de pedra desceu rápido, abrindo-lhe um pedaço do crânio e espalhando parte dos miolos na areia molhada. U’Ratak não deixou de sentir repulsa pelo que fizera, mas colocou o machado utilizado sobre o corpo do soldado, como mandava o costume, e puxou outro da cintura.

Alguém gritou lá dentro e logo outro apareceu na janela com uma espada. U’Ratak se afastou, mas antes deu uma olhada e viu onde estava o carregamento de pólvora. Correu para um lugar aproximado e escalou a meia parede até subir nos caibros.

Em cima do telhado, testou os locais mais vulneráveis. Outros perceberam sua intenção e também subiram, mas U’Ratak pediu para que seus colegas ficassem do outro lado.

Quando todos estavam em posição, o jovem guerreiro forçou a parte do teto que ficava em cima do estoque de pólvora. Os soldados perceberam a movimentação e começaram a espetar de baixo para cima com as espadas. Um dos golpes atingiu em cheio o calcanhar de U’Ratak que pendeu para o lado e caiu sobre alguns caibros que cederam com seu peso.

A queda machucou suas costelas, fazendo sangrar ainda mais o corte aberto pela farpa da paliçada. Zonzo de dor e sob a água que jorrava do telhado quebrado em sua cabeça, o jovem esperava sua visão se acostumar ao interior do forte quando percebeu os soldados vindo em sua direção. Um dos guardas fazia pontaria para atirar em sua testa quando metade do teto do outro lado cedeu e vários Remambés entraram, golpeando com seus machados de pedra qualquer soldado que encontrassem.

Com o forte tomado e os inimigos mortos, U’Ratak sentou-se de frente pro mar. Pressionou o pé até que a ferida parasse de sangrar, conferiu o corte na costela e contemplou o oceano. Sentiu um abismo crescer entre eles. Nem mesmo um dia havia passado, mas era como se uma vida inteira o separasse daquele jovem que, pela manhã, sonhava em remar até o mar calmo.

Compreendeu por que os avôs não obrigavam todos a virarem guerreiros. Além disso, o que ele temia se tornara realidade, agora sabia porque os guerreiros eram distantes. O menino que queria domar os peixes no braço morrera naquela luta, apenas o guerreiro ficara e ele levaria consigo para sempre os horrores daquela batalha. Sentia também a responsabilidade de não deixar que os brancos matassem os sonhos dos jovens, como mataram o dele, ou quem sabe recuperar seus parentes vendidos, mas precisava cuidar dos feridos antes. Levantou-se e foi ver como podia ajudar os outros.

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nilo nobre
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Arqueólogo, Historiador e aprendiz de escritor e quadrinista. Brazilian Archaeologist, Historian and aspiring writer and comics artist.