Sobre dirigir

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
Published in
3 min readFeb 1, 2024
Autoria desconhecida.

Respiro fundo. Solto o freio de mão, deixo o carro se mover devagarzinho. Olho pela janela, pelo retrovisor, pelo outro espelhinho. Quero estar segura de que não tem ninguém vindo, nem carro, nem gente, nem cachorro, nem nada. Dou seta e entro na rua que preciso descer. Me forço a respirar fundo de novo e sigo em frente.

O caminho de casa até o trabalho não é longo, mas o horário é desafiante. A cidade inteira está em movimento, pessoas indo e vindo, e as ruas normalmente pacatas ficam mais dinâmicas. Sei o que fazer pra manter a calma mesmo em meio à confusão da hora pico. Permaneço à direita, vou no meu tempo. Respeito cada semáforo, cada placa de velocidade. Olho o mapinha do celular de vez em quando pra garantir que estou no caminho certo, seguro o volante com as duas mãos, estou atenta, alerta. Sei que posso fazer isso e abraço essa ideia pra enfrentar o medo que também está ali comigo, no carro.

Me dá medo dirigir. Não acho que seja um medo intransponível. É só receio de algo que nunca tive muito contato, é medo que nasce da ignorância, da falta de experiência. Cada vez que pego o carro, sei que esse medo dá uma diminuída. Me pergunto quando será que ele vai desaparecer de vez e me sentirei tão segura como todas as pessoas ao meu redor que dirigem como se não fosse nada demais. O carro é extensão delas, de suas pernas, braços, cérebro; elas dominam a ferramenta, não se permitem ser dominados por ela. Acho isso incrível.

Minha primeira e principal referência de motorista é minha mãe. Desde que tenho conhecimento de gente, vejo minha mãe dirigir. E dirigir bem. Com ela não tem tempo ruim e é capaz de pegar estradinha de terra ou rodovia, rua de bairro ou avenida de múltiplas faixas. Foi ela quem me disse, “aprenda a dirigir, filha. É só mais uma das coisas que vão te ajudar a ser uma mulher independente”. Assim como ela, várias mulheres da minha família tiveram a oportunidade de aprender a dirigir e, logo, de possuir seus próprios veículos. Cada uma delas foi um farol para mim, provas de que eu também podia chegar lá.

Hoje, meu referente na direção e quem me ajudou a entender como dirigir o carro que temos é o meu marido. Ele, que aprendeu a dirigir ainda adolescente lá no campo onde cresceu, tem uma facilidade imensa de ir de aqui pra lá com o carro. Dirige até de um país a outro, levando nosso carrinho usado, cansado, mas valente, pelos caminhos mais diversos. Agradeço sua paciência. Sem ele, talvez nunca tivesse voltado a tentar.

Vou pensando em tudo isso enquanto dirijo. Mas deixo os pensamentos sempre em segundo plano. Minha concentração está no carro, na rua, no mundo ao redor. Quero chegar bem, inteira, tranquila. Então me foco no que tenho que fazer e é bom. Sinto a cabeça clara, a mente afiada. A respiração se normaliza e o medo vai ficando opaco enquanto me concentro no que tenho que fazer. Minha mente, tão acostumada a pensar em quinhentas coisas ao mesmo tempo, agradece a oportunidade de ficar absorta em uma só.

No horizonte, vejo que um dia dirigir vai ser uma das atividades para ajudar a lidar com essa minha ansiedade galopante. Algo que vai me tirar do caos de pensamentos e afazeres, já que para dirigir preciso estar no aqui e agora, com as mãos no volante e uma única tarefa pra realizar.

No horizonte, vejo o meu destino ficar cada vez maior. Sei que estou chegando lá.

Regiane Folter é escritora e comunicadora, nascida em São Paulo e hoje residente da cidade de Montevidéu, capital do Uruguai. Desde 2017 publica semanalmente aqui no Medium e em 2020 autopublicou seu primeiro livro, “AmoreZ”, uma coleção de contos e crônicas sobre o amor. Em 2020 fez parte de antologias organizadas pela editora Cartola e editora Psiu!, e em 2021 participou das coletâneas do Prêmio Off-Flip de Literatura. Em 2023 publicou seu segundo livro, “Mulheres que não eram somente vítimas”, com a editora Folheando.

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