Sobre o papel dos livros e a construção da identidade leitora: o que é um bom leitor?

Lucas Carneiro
Revista Mormaço
Published in
8 min readJun 4, 2024
The bookworm (1850–60). Carl Spitzweg (1808–1885)

Entre os dias 26 de abril a 1ª de maio, o Centro de Convenções de Salvador abriu as portas para mais uma edição da tradicional Bienal do Livro. O evento contou com a presença de mais de 100 mil pessoas e uma estimativa de aproximadamente 800 mil livros vendidos. Nesse cenário de incentivo à leitura e imersão no mundo das artes, cultura e literatura, alguns questionamentos emergem como pontos de reflexão: Qual o papel dos livros na formação do sujeito humano? Como é condicionada a construção de um leitor? O que é um bom leitor? Em que medida a aquisição compulsiva torna-se uma negativa nesse processo?

Ao especular sobre a origem da leitura no mundo, nota-se que esta prática sempre caminhou em uníssono com a história da humanidade. Desde os desenhos rupestres, as tábuas grafadas em escrita cuneiforme, até a era digital, esse dispositivo tem sido crucial ao sujeito para a compreensão de mundo. Um exemplo notável remonta ao século IX, quando o Rei Alfredo de Wessex, nos anos iniciais de formação da Inglaterra, educava seus guerreiros mediante ao ato de ler e escrever. Nesse processo, a leitura desempenhava o papel de promover a criticidade e o olhar arguto sobre determinadas situações, enquanto a escrita emergia como um elemento capaz de auxiliar a coleta de informações específicas sobre o adversário, e promover a expansão/manutenção da cultura local.

Não raro, com efeito, foi o surgimento dos suplementos e revistas impressas. Essas publicações, além de estimular o engajamento do público para com os aspectos discutidos nas colunas, abriam espaços para que o leitor pudesse oferecer suas contribuições mediante ao exercício crítico-argumentativo. Assim, um horizonte dialético se revelava, de modo que as impressões de leitura fossem compartilhadas e discutidas pela comunidade em geral. Nesse contexto, a identidade leitora do sujeito se construía de maneira gradual, sempre pautada nos princípios centrais de estímulo à criticidade e aumento da capacidade retórica/reflexiva.

Desta forma, poder-se-ia inferir que todo ser humano é, de fato, leitor. E que a leitura, por si, surge como um elemento intrínseco ao ser. Essa visão, por sua vez, se amplia quando se considera a definição de lectura não apenas como uma prática centrada exclusivamente a textos escritos; mas sim como um empenho múltiplo que perpassa pelo campo da imagem, dos sentidos e do mundo ao nosso redor. Contudo, à medida que os anos transcorrem e a sociedade se torna cada vez mais refém dos princípios objetivistas do capital, surge um questionamento: Qual o espaço da leitura literária na atualidade? Qual a posição ocupada pelos livros na vida das pessoas hoje?

Conforme um estudo publicado pelo Instituto Órizon [1] em março de 2023, o déficit de leitura em território brasileiro é uma realidade evidente. Segundo dados da 4ª Edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, desenvolvida pelo Instituto Pró-Livro, Itaú Cultural e Ibope Inteligência, a média anual de livros lidos por habitante é 4,96%. Do começo ao fim do ano, apenas 2,43% desses livros são lidos de maneira completa, o que reflete um percentual alto de abandono. Essa circunstância não se resume apenas a ausência de interesse por parte das pessoas na adoção de livros e prática da leitura como um hábito contínuo. Mas é, também, um reflexo de diversos fatores que ganham proporções significativas a cada ano. Poder-se-ia citar, a título de ilustração, a falta de democratização de acesso ao livro; a corrida desenfreada; a crescente dos mercados de entretenimento; a cacofonia da era digital; a ausência de programas de estímulo à leitura e a literatura; entre tantos outros.

Diante desses desafios, como manter o alto índice de leitura se as bibliotecas estão cada vez mais carentes de visitantes, ocupadas apenas pela poeira e mofo que se funde ao silêncio dos autores que repousam nas estantes? Como garantir esse percentual quando, diariamente, os veículos de imprensa noticiam a falência de uma livraria? Desta maneira, com o intuito de superar tais impasses existentes, alguns esforços têm sido implementados de modo a ampliar a compreensão do livro como um instrumento formativo e da leitura como uma prática essencial ao sujeito. É o caso, por exemplo, dos booktubers e clubes de leitura. Entretanto, ao examinar o procedimento de tais iniciativas, nota-se, decerto, sem realizar generalizações, algumas fragilidades que, por si, repousam em uma concepção errônea do que de fato se configura por bom leitor, e como esse processo de construção é condicionado.

Com a emergência dos canais de streaming ao redor do mundo, as plataformas digitais abriram espaços ao leitor para que pudesse contribuir e compartilhar ao público suas experiências de leitura, bem como informações e sugestões acerca de obras específicas. A tecnologia, nesse processo, se revela como uma ferramenta potencializadora, na medida em que promove o estímulo de consumo ao livro e criação de pequenas comunidades cujo propósito reside na discussão do texto literário e suas nuances. Na grande maioria das vezes, os vídeos são ambientados por um cenário simples, constituído pela presença de estantes, prateleiras e cômodas repletas de livros. No entanto, a manutenção de tais canais requer uma produção contínua de conteúdo para atender as expectativas e anseios do espectador. Advém, nesse processo, a criação de alguns checklists pautados em metas como “130 livros em 3 meses”; “300 livros em 12 meses”, etc.

Ao considerar essa premissa, em especial no que tange à criação de desafios pelos entusiastas da leitura como forma de proporcionar a motivação do hábito de ler e consumo de literatura, nota-se um aspecto positivo. De fato, a criação de pequenas redes de apoio permite o desenvolvimento de discussões sobre obras em questão, trocas de experiência e, sobretudo, a manutenção da prática da leitura. Entretanto, nesse mesmo procedimento, eis que emerge um ponto de tensão. O caráter do impasse, por sua vez, é medido pela noção de leitor e leitura que ascende dessas metas ambiciosas, as quais materializam — mesmo que de maneira indireta — uma noção de que a quantidade se sobrepõe a qualidade. Nesse contexto, cria-se, no imaginário do leitor, uma ideia de que um bom leitor é aquele que consome obras em grande escala. Na medida em que essa concepção é aceita e difundida, constata-se uma defasagem no processo de leitura. A absorção das entrelinhas, o convite à submersão da significação inerente ao texto, o exercício crítico-argumentativo, são negligenciados em favor da rapidez — que prioriza apenas o cumprimento de metas ao invés da valorização do conteúdo e poder instrutivo da obra em questão.

Ainda sob essa mesma perspectiva, eis que emerge um segundo fator a ser considerado: a aquisição compulsiva. Nesta perspectiva, questiona-se: a quantidade é parâmetro válido para definir um perfil de leitor? De fato, não. Ter uma estante repleta de livros, ou adquirir obras com uma certa frequência, extrapolando, por sua vez, um limite de espaço, não é um critério digno para definir se determinada pessoa é ou não um bom leitor. Há, nesse processo, inclusive, um paradoxo medido por um eixo positivo e um negativo, que se trata, de maneira mais precisa, da responsabilidade. Decerto, a aquisição compulsiva de livros pode ser examinada como um investimento necessário. Afinal, as obras literárias são consideradas uma via direta de acesso para a aquisição de saber, o que contribui de modo basilar para o exercício crítico, reflexivo, e humano. Contudo, durante esse processo, cabe ao leitor assumir sua responsabilidade central: ler. Isso porque os livros não são meros objetos de enfeite. As estantes, bibliotecas públicas ou pessoais, não são locais cuja função reside em embelezar. Muito pelo contrário, surgem como um verdadeiro mundo. Um espaço preenchido por uma vasta gama de aventuras, histórias, curiosidades, conceitos e teorias. Assim, a aquisição de livros, seja de modo compulsivo ou não, torna-se um aspecto digno de merecimento apenas quando o exercício contínuo do ato de ler acompanha esse processo de forma paralela.

Outro ponto passível de exame crítico, ainda ao que concerne as noções de (bom) leitor e (boa) leitura, são aquelas manifestadas pelos clubes de leitura. Em tempos onde o ato de ler tornou-se uma prática ofuscada pela grande massa tecnológica, essas pequenas agremiações têm se tornado uma válvula de escape, sobretudo na medida em que promove a resistência da leitura e literatura presentemente. Além disso, nutrem de um processo democrático que possibilita com que as pessoas interessadas leiam regularmente, em especial por meio da disponibilização gratuita de obras em formato eletrônico. Essa seleção, na grande maioria das vezes, é feita por parte dos responsáveis pelo desenvolvimento do projeto que, por conseguinte, viabiliza uma abertura para que outros autores sejam incrementados a lista de livros catalogados mediante a possíveis sugestões. Não há, no decurso do processo de escolha, critérios pré-estabelecidos. Contudo, no tecido desse exercício, observa-se, decerto, sem realizar generalizações, a presença de um fator: a exclusiva valorização de obras e autores clássicos, canônicos, em detrimento das demais literaturas. Essa noção avança na medida em que se considera um bom leitor, ou, mais precisamente, a construção da identidade leitora, como sendo um fator condicionado apenas por via das obras canônicas. Isso resulta, no subconsciente do sujeito, uma perspectiva que tende a desqualificar outras formas de literatura, dando vazão a uma mentalidade configurada pelo elitismo literário. Inegáveis são as contribuições e papéis desempenhados pelos livros e autores clássicos. Afinal, são obras que atravessam séculos perdurando dado o seu vigor estético-poético-narrativo, e, independente do contexto histórico no qual estamos imersos, sempre possui algo a nos dizer. Contudo, ao situar um perfil de leitor competente apenas ao espaço de consumo de obras canônicas, cria-se uma espécie de restrição. Isso resulta na desconsideração das mais variadas experiências literárias e, por conseguinte, no confinamento da literatura a uma categoria limítrofe — sem promover, de fato, o conhecimento da diversidade de gêneros e novas formas de expressão.

Assim, diante das reflexões fomentadas ao longo deste ensaio, eis que emerge uma questão: o que, afinal, define um bom leitor? Neste sentido, dando por si as noções que apontam para quantidade, rapidez e estagnação como indicadores de qualidade, poder-se-ia afirmar que um bom leitor é aquele que faz do próprio livro a sua verdadeira morada. É aquele que valoriza a morosidade, a tranquilidade e a absorção da mensagem, em contraposição ao teor frenético que nutre o mundo moderno. Um bom leitor é aquele que empenha em seu cerne o exercício crítico-argumentativo. Valoriza a escuta e as demais experiências. Desconfia das verdades concretas. Questiona o discurso tradicional. Exprime, mediante a formulações reflexivas, sua própria visão ante o exposto. É aquele que busca, sobretudo, fomentar o debate. Abrir um campo dialético de criticidade. Um bom leitor é aquele que faz da leitura o seu hábito diário. Que busca estabelecer um entrecruzamento entre sua experiência para com o que foi lido. É aquele que se encontra sempre aberto ao novo. Um bom leitor não se limita a um único gênero, e ainda que haja discordâncias, exprime sua visão embasada em fundamentos.

Logo, o que se observa acerca de tais pontos, é que a construção de um bom leitor é um fator que se constitui de modo processual. No entanto, para que isso se efetive de modo substancial, cabe a nós, e às demais organizações de fomento a leitura, potencializarmos uma definição de leitor que esteja cada vez mais próxima da verdadeira essência do exercício, anulando quaisquer aspectos que promovam um completo afastamento deste.

Notas bibliográfica

[1] ÓRIZON, Instituto. Acesso à leitura ainda é desafio no Brasil. Como formar mais leitores? São Paulo: Pró-Saber SP. Disponível em: Acesso à leitura ainda é desafio no Brasil. Como formar mais leitores? — Pró-Saber SP (prosabersp.org.br). Acesso em: 10 mai. 2024.

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Lucas Carneiro
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Baiano, 23 anos. Graduando em Letras, Língua Inglesa e Literaturas. Escreve e publica nas horas vagas. É colaborador na Revista Mormaço. @lucasncarneiro.