Sobre um quadro de Iemanjá
Me rememorava o Cristo
a divindade de seios:
Ele lá sobre as águas do Jordão
e ela aqui numa tela
no quarto de uma casa alugada
em São Luís do Maranhão
Era bela
morena era ela
feita em quadro
mundanamente comercial
reproduzido aos milhares
para enfeitar os cômodos
das casas, domus, lares
de a quem lhes apeteça
o azul sobre o azul
o vermelho pintado na boca
e as rosas brancas e rosa
debatendo-se com os azuis;
daqueles que adormecem fixados
nas curvas espertamente desenhadas
pra vender mais e mais e mais
De suas mãos descendiam,
com as pinceladas do artista,
rosas sobre o mar
Que eram marinhas
as águas que eu via
naquele quadro brilhar
Azuis águas minhas
que ainda não experimentara em vida
pois desse tom nesta ilha não há
De seus cabelos escuros
de Mulher Maravilha
despencavam estrelas
E admirável era não vê-las
por trás de um mito
assim pintado
no cenário que emoldura a fêmea
vendida nas feiras
de qualquer bairro
Parada sobre o mar
estática estava ela
Iemanjá numa janela
feita de paus, panos e tintas
Séria, sorria
triste, alegrava
mas caminhar não caminhava
paralisada entre as quatro talas
de sua moldura cor de breu
Só eu a fazia voar
seu cavalo eram meus pensamentos
minhas doidices de infante
a imaginar
uma deusa só pra mim
uma divindade particular
me encobrindo de encantos
fascínios
e medos febris
Então eu a vi
saindo do quadro
logo após o balançar das vagas
e veio flutuar em minha rede
fazendo-me assombração
Deusa do mar em minha parede
transformada em pontos multicores
vermelhos, azuis e verdes
e as rosas e os cravos
e os pés escondidos
sob a barra de um vestido
seco o tempo todo
ainda que sobre o mar
impermeável para sempre
esvoaçando, transparente
nas formas gostosas
de Iemanjá.
(2012)