Te Achei (Eu Acho)

Leonardo Passovi
Revista Mormaço
Published in
3 min readMay 16, 2022
Chungking Express (1994)

Tem alguém me vigiando. Tem alguém que sinto que acompanha cada passo que dou. Que sabe tudo que faço. Todos os dias eu sinto isso. Que tem alguém ali. Tem alguém invadindo meu espaço e acho que esse alguém é você.

Tem alguém que escuta as músicas que eu escuto. Segue minhas playlists porque sabe que a plataforma nunca vai me dizer quem é e eu vou ter que imaginar.

Tem alguém que entra na minha casa, mexe nos meus pertences, muda a ordem dos meus livros e depois bota de volta, só pra deixar aquela estranha sensação de que alguma coisa foi mexida, sem jamais poder acusar com precisão o que. Só você faria um negócio assim.

Tem alguém bisbilhotando minhas coisas, tomando parte da minha vida, mas sem contar pra ninguém. Alguém que se satisfaz em sentir a textura e o cheiro, sob o véu do sigilo. Com o arrepio das escondidas, se esgueirando pelos cantos. Isso é a sua cara.

Tem alguém que veste minhas roupas e calça meus sapatos por coisa de 15 minutos e depois guarda no lugar, só pra deixar o tecido estufado com sua ausência. Pedindo por um corpo que não está mais ali.

Tem alguém que desfaz minha cama, pula em cima do meu sofá, esconde meu fone de ouvido depois de dançar com ele na sala de estar. Primeiro porque sabe que eu nunca vou descobrir, segundo porque sabe que eu já sei de tudo, mas não posso dizer nada.

Tem alguém que morre de vontade de viver o flagra, mas que não faz a menor ideia do que faria, se fosse o caso. Porque não sabe o que quer, se já quis, se vai querer.

Tem alguém que gosta de me confundir quando me explica as coisas. Que ri das minhas tentativas patéticas de encontrar alguma linearidade no raciocínio. Alguma concretude nas ideias abstratas. E desatina a falar, sorrindo como uma mãe zelosa, olhando como uma amante indecente, tocando, com o cuidado de uma enfermeira, a coisa que ela mais quer destruir naquele momento.

Alguém que invadiu minha cabeça, perturbou a minha tranquilidade em silêncio, descobriu tudo o que eu gosto e desgosto. Passeou pelos cantos mais escuros e medonhos; varreu alguns diversos anseios; lustrou meus medos; amolou a lâmina dos meus arrependimentos; sentou no ponto mais ensolarado e fez um piquenique; rasurou minhas vontades; pegou os fios da minha eloquência e deu um nó.

Depois saiu apagando suas pegadas com folhas de bananeira, que deixou pelo caminho, porque não seria uma visita sem a eterna sensação de que alguém passou por ali.

Sei que tem alguém invadindo meu espaço. E eu quero que seja você. Pra depois ficar eu atônito lhe procurando, escrutinando cada pedaço, cada junta, cada aresta, cada vão. Ciente de que eu não vou encontrar nada e que isso significa que eu encontrei você.

--

--