Tratamento

nilo nobre
Revista Mormaço
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7 min readFeb 1, 2024

Do portão interno, Rosalinda assistia dona Júlia ir embora. Tivera alta depois de anos de internação. A mulher não podia deixar de se preocupar com a amiga que partia. Era a mais velha da instituição e estava recebendo alta para um mundo que não conhecia mais. Rosalinda se perguntava se a estavam liberando porque acreditavam que estava bem, ou se a estavam abandonando apenas para morrer desamparada fora do hospício.

Na saída, dona Júlia olhou para trás e percebeu o olhar apreensivo da amiga. Ela abriu um largo sorriso e em seus passinhos já lentos pelo peso da idade, voltou até Rosalinda. Abraçou-a bem apertado, deu-lhe um beijinho no rosto e falou-lhe ao ouvido:

— Não se preocupe, nunca estive tão bem. Aliás, vou lhe contar um segredo desse lugar. Cada pia é um espelho que permite que você confronte uma memória.

Rosalinda levantou uma sobrancelha e olhou desconfiada para a senhora, mas dona Júlia apenas sorriu e se afastou. Em poucos instantes, estava na rua e o portão foi fechado, mantendo os de dentro alheios ao mundo de fora e os de fora longe dos de dentro.

Durante a noite, todos voltaram para seus quartos fechados. Rosalinda era uma das poucas que tinham uma suíte individual, pois viera de uma família abastada. O cômodo tinha uma pintura amarela, manchada pelos fungos que se proliferavam na estação chuvosa. Havia uma cama com lençóis que fediam a éter, um sanitário e uma pia, ambos de cerâmica preta.

Como de costume, Rosalinda se deitou e ficou olhando para o teto branco. O ventilador pendia e, sempre que estava ligado como naquela noite, balançava como se fosse se desprender do teto a qualquer momento. Ela se revirava na cama, mas o sono não vinha. Não sabia se estava apreensiva com a saída de dona Júlia ou se com a esperança de um dia poder sair também. Lembrou das palavras da idosa.

Levantou-se e foi até a pia.

Encheu-a de água e olhou. Percebeu que a água contra o fundo preto da cerâmica permitia mesmo que ela visse seu reflexo. Pela primeira vez, percebeu as rugas que surgiam em seu rosto. Quase não se reconhecia mais.

Por muito tempo Rosalinda não se moveu. Ficou apenas contemplando os detalhes que desconhecia sobre si mesma. Então tudo mudou. Não estava mais no quarto do hospício. Estava na casa de seus pais. Dentro de seu guarda-roupas onde brincava de esconde-esconde quando era pequena. Pensou em sair quando ouviu um barulho.

Pela fresta da porta entreaberta, viu uma mocinha sentada na cama. Ela chorava. Rosalinda reconheceu de imediato. Acabara de receber a notícia que deveria se casar com João Roberto e não com Carlinhos, que era seu namorado na época. A palavra de seu pai era lei, mas ela não conseguia se livrar da ideia de que estava sendo vendida. Quis sair e consolar sua versão mais jovem, mas tudo mudou novamente. Agora estava no escuro. Não conseguia ver nada ao redor exceto pelo rosto furioso de seu pai dizendo que a culpa era toda dela, que era uma imprestável e incompetente. Rosalinda assistiu impassível enquanto duas mãos agarraram o pescoço de seu pai e o arrastaram para a escuridão.

Rosalinda acordou quando os enfermeiros a erguiam e verificavam seus sinais vitais. Dormira no chão ao lado da pia. Teria sido tudo um sonho? Ou será que entrara de fato em suas memórias como ensinou dona Júlia? Não sabia dizer. Era mais fácil ter sido sonho, não lembrava de ter visto seu pai tão furioso. Muito menos de alguém tê-lo estrangulado.

O restante do dia foi bem tranquilo, mas Rosalinda percebeu mudanças sutis. Alguns dos enfermeiros a tratavam com mais cuidado, outros a olhavam desconfiados. Se perguntava se era por ter sido encontrada no chão, ou se havia algo mais. Mas não importava. Por algum motivo, notara também uma mudança interna, se sentia mais leve. Como se um peso tivesse sido retirado de seus ombros.

Mais tarde durante a noite, o enfermeiro Francisco foi muito mais atencioso do que o normal e foi até difícil para Rosalinda convencê-lo de que estava tudo bem. Quando ele se deu por vencido, ela pôde enfim, voltar a encarar a si mesma naquele espelho negro.

Tornou a se olhar com atenção e dessa vez não demorou nadinha para que tudo ficasse diferente. Estava em casa. Sentiu-se um pouco aliviada de pôr os pés mais uma vez naquele local, mas logo o alívio mudou. Diante de si, estava uma Rosalinda mais jovem com dois baldes d’água no chão enquanto passava o pano. Na cozinha a panela de pressão chiava como se avisasse de um perigo iminente. A imensa barriga da gestação reduzia sua mobilidade. Ela precisava apagar o fogo, mas o chão molhado lhe pregou uma peça.

Rosalinda se sentiu impotente mais uma vez. O peso das incontáveis tarefas que lhe eram atribuídas, o peso que a gestação cobrava de seu corpo, o peso dos olhares de seus amigos por ter desmaiado de cansaço depois da queda, o peso da cobrança de seu marido pelas coisas que a panela de pressão destruiu e, acima de tudo, o peso da cobrança por ter perdido a criança.

Sentiu as lágrimas rolarem em seu rosto, mas logo o cenário mudou mais uma vez. Estava na janela de seu quarto, tarde da noite olhando para a rua. O marido não voltava mais tão cedo e já era de conhecimento comum que João Roberto tinha amantes. Tudo muda de lugar mais uma vez e Rosalinda agora está em sua cama, ao lado do marido. O quarto está escuro, mas há algo diferente. As roupas femininas no cabide não eram dela.

Rosalinda percebe que tudo fica escuro, como quando viu seu pai na outra noite e nota que há algo em sua mão. Ela ergue e percebe uma faca de cozinha. Ela olha mais uma vez para o marido dorminhoco e procura dentro de si os sentimentos. Lembrou-se que os primeiros dias do casamento foram bons. Ele parecia um homem bom e trabalhador. Mas logo percebeu que ainda havia aquele ressentimento, tal como quando seu pai decidiu o que ela devia fazer e ela só podia obedecer. Ao primeiro ressentimento outros se somaram: mercadoria, burro de carga, chocadeira, peça quebrada, substituída.

A faca desceu rápido.

No dia seguinte, Rosalinda foi encontrada mais uma vez ao lado da pia. E tudo que vivera no dia anterior, se repetiu, mas com mais intensidade. Alguns enfermeiros pareciam ainda mais preocupados, enquanto outros cochichavam pelos corredores quando ela passava. E tal como a atenção e suspeitas aumentaram, também se deu com o alívio que Rosalinda sentia. Estava ainda mais leve.

Pela primeira vez, parou para cheirar as flores do jardim de convivência. O mundo parecia mais vivo, mais colorido. Confrontar suas memórias estava sendo ótimo, apesar de não se lembrar de algumas coisas que apareciam ali.

De volta ao quarto, a enfermeira Paula estava espantada com a lucidez de Rosalinda.

— Não é à toa que estão falando em lhe dar alta.

Rosalinda a encarou surpresa e a enfermeira percebeu que tinha falado demais. Mas apenas piscou para a paciente e deu um sorrisinho.

— Não conte a ninguém que eu te falei, tá?

Rosalinda confirmou e a enfermeira saiu, deixando-a novamente sozinha. Então ela se dirigiu mais uma vez para o espelho negro.

Ela logo percebeu que não teria muito o que lembrar. Estava no consultório do psiquiatra. Estava sentada em um divã enquanto o médico ficava em sua poltrona acolchoada rodeado por tacapes e lanças que guardara como lembranças exóticas de viagens a terras indígenas. O diagnóstico não tardou a chegar: instável, histérica, esquizofrênica. Como se espera que alguém aguente tudo isso? E como ele poderia saber o que foi passar por tudo aquilo? Sentadinho em sua poltrona confortável rodeado de itens indígenas para se sentir superior, sem receber uma única cobrança da sociedade para ser exemplar, para cuidar de um trabalho infinito sem se permitir descansar quase nunca, para ter em si toda a responsabilidade de gerar e criar outra vida, para carregar para sempre a culpa e o estigma de não ter conseguido. Como ele poderia saber? Tudo muda mais uma vez e Rosalinda está agora de pé atrás da poltrona com um dos tacapes nas mãos.

— Tá aqui minha terapia. — E o porrete desceu.

Pelo terceiro dia consecutivo, Rosalinda acordou no chão. Mas dessa vez, antes que os enfermeiros chegassem. Quando Francisco entrou no quarto, ela já estava de pé e com um sorriso radiante.

— Bom dia!

— Vejam só. Parece que alguém está adivinhando que vai receber boas notícias.

Rosalinda sentou-se na cama e ouviu enquanto Francisco relatava que a diretoria havia decidido que, diante da melhora apresentada nos últimos dias, ela receberia alta e poderia voltar para casa naquele mesmo dia. Então o rapaz fechou a cara e pareceu preocupado. Ela quis saber o que o incomodava.

— Mas isso é ótimo, não é? Poder voltar para casa?

— É sim, mas…

— Fala logo.

— Acho que estão fazendo isso por causa dos acontecimentos recentes. E eu acho que você precisa saber.

— Então desembucha de uma vez!

— Tanto seu pai, como seu marido foram encontrados mortos e receio que estão te liberando porque não tem mais quem pague sua estadia aqui.

— Entendo.

Rosalinda baixou a cabeça e fingiu que estava triste.

— Bom, então tenho mesmo que sair e cuidar dos funerais, não é? Mas não se preocupe, eu volto aqui para visitar vocês. Acho que posso ensinar algumas coisas para minhas colegas aqui.

Quando atravessou o portão para a calçada, entendeu a leveza de espírito de dona Júlia naquele dia. Há muito tempo ela não se sentia tão livre assim.

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nilo nobre
Revista Mormaço

Arqueólogo, Historiador e aprendiz de escritor e quadrinista. Brazilian Archaeologist, Historian and aspiring writer and comics artist.