tropeço remoto

Larissa Lima
Revista Mormaço
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2 min readMay 21, 2021
Nikola Miljkovic

bateu a porta com a ilusão de se desentupir de si.
distribuir com o resto do corpo a fadiga acumulada na cabeça.
é que correr serve pra triturar pensamento.
transforma em pedaço e pesa menos quando não tá inteiro.

naquele dia se sentia embaraçada. como que desfamiliarizada com a rua. parecia vista demais e era tudo que menos queria.
afinal, deve ter algo com isso a ligeireza do passo de quem corre.
registro de imagem embaçada o suficiente pra ser quase reconhecível.

se era aquele o momento do dia, digamos que, o único em que podia desfrutar do céu, confessou a captura pela paleta de cores — irregular e viva — que se apresentava.
atributos que também poderiam se encaixar fielmente como autodefinição, se fosse o caso.
além do mais, no tal dia foi-se espalhado o burburinho de um fenômeno lunar. tudo mais que o suficiente pra que o chão se tornasse quase desprezível.

não fosse pelo tropeço.

(claro! se tem um movimento que a acompanha nessa vida são os tropeços)

algo se sobrepôs à planitude do chão tão confortável porque silencioso. bom, podia ser um pedaço de madeira pedra máscara cirúrgica brinquedo quebrado parte de um velotrol.

mas não.

um controle remoto.
naquele chão silencioso.

sem pestanejo as vozes de dentro se aglomeraram pra conspirar:
— ih, ó lá! tropeçou no controle!

como num passo de falsa elegância, destrambelho e orgulho, tentou entender como aquele ato podia ter cara de pau tamanha em dançar com o (im)previsível de uma só vez.
passou por cima do objeto aleatoriamente brotado num pedaço não menos aleatório de calçada. e disputou silêncio contra o burburinho inconveniente da cabeça que se repetia como sentença.

seguiu.

como quem segue segurando o vômito ou engasgada com uma fumaça mal tragada ou com um gole que prende a respiração porque não desceu redondo. ou como quem tenta se armadurar pra não ser tida como emocionada.

lá vinha a imagem então do controle que nem refluxo e feito mantra. podia ser até metáfora cabida em demanda de análise prosa de bar show de comédia discussão de relacionamento provérbio meditativo cilada de autoajuda.

e logo mais não passaria de um tropeço remoto.

já que tropeço é que nem gente que a gente esbarra
não leva nada
mas também não deixa.

quem liga?
nada melhor que se gabar de um dia em que passou por cima do controle.
e seguiu.

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Larissa Lima
Revista Mormaço

escrever é como cachoeira que sustenta a própria queda.