Um homem bom

nilo nobre
Revista Mormaço
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6 min readMar 4, 2024
Fonte da imagem: Adaptado de imagem gratuita obtida em freepik.com

José Antônio agarrava com força na barra de ferro, tentando se manter como podia em meio aos sacolejos do ônibus lotado. Uma mão era para se segurar, a outra envolvia a mochila que ele abraçava como a um recém- nascido no colo para evitar os frequentes pequenos furtos do 306.

Quando o ônibus fez sua parada corriqueira na avenida 2 de maio, dois homens subiram, chamando a atenção de todos. Eram brancos e bem vestidos, como agentes secretos de filmes, diferentes de todos que costumavam pegar o 306. José Antônio ficou curioso, mas logo voltou a pensar em como conseguiria pagar a conta de luz da biblioteca comunitária que administrava e como explicaria em casa que perdera o emprego, pois o pagamento dos estacionamentos do shopping agora seriam feitos através de autoatendimento. Então um dos homens chamou seu nome.

O jovem pensou em se esconder e fingir que não era com ele, mas alguns passageiros que também trabalhavam no shopping o denunciaram com o olhar. Em poucos instantes todo o 306 olhava para Antônio como se ele tivesse feito algo horrível. Na hora em que o rapaz se identificou, um dos homens puxou a cordinha para dar sinal ao motorista.

— Nos acompanhe, por favor.

Os três desceram e seguiram andando pela calçada sob os olhares curiosos de todo o 306. José Antônio andava no meio dos dois, encurvado e abraçado à mochila. Os três pararam em frente a um carro luxuoso que estava estacionado próximo à esquina. Um dos homens o abriu e indicou o interior.

— Por aqui, por favor.

José Antônio ficava cada vez mais temeroso por sua vida. Ao entrarem, o veículo deu partida e saiu. Um dos homens, que agora o rapaz viu que era um idoso, pigarreou e o encarou com um ar bondoso.

— Nos desculpe pela comoção que causamos. Não era nossa intenção fazer com que você se sentisse tão desconfortável.

Antônio continuava acuado segurando sua mochila como se pudesse se esconder atrás dela.

O segundo homem colocou a mão em seu ombro para acalmá-lo, mas o primeiro acenou que o deixasse. Então continuou:

— Nós estamos aqui para lhe fazer um convite. Somos de um grupo muito seleto de cidadãos. Nossa comunidade sempre se ajuda para que ninguém passe necessidade. Assim como você faz com sua biblioteca comunitária.

José Antônio olhou para eles ainda mais desconfiado.

O velho riu.

— Sim. Nós sabemos que você arrecada dinheiro para comprar livros e ajudar os jovens do seu bairro. E é exatamente por isso que achamos que seria ideal para fazer parte da nossa sociedade. Nós valorizamos pessoas como você, que dão o máximo de si para ajudar os mais necessitados.

Ao olhar pela janela identificou as casas espaçosas e chiques, enfileiradas. Ele nem mesmo sabia onde estava. Um mundo diferente do seu. Talvez eles fossem pessoas generosas e, quem sabe, poderiam ajudá-lo. Queria ter esperança, mas se agarrou mais uma vez à mochila. Quando a esmola é demais, o santo desconfia.

O velho percebeu que o rapaz continuava duvidando de suas intenções. No fundo, ele gostava daquele jogo. Todos foram resistentes no início, mas, no fim, homens bons como aquele rapaz, sempre davam o voto de confiança. E era isso que ele buscava:

— Eu sei que tudo isso é muito repentino. Ninguém espera de verdade que uma oferta milagrosa caia do céu. Por mais que todo mundo sonhe com algo assim, é sempre suspeito quando acontece. Eu entendo isso. Mas nos dê uma chance de mostrar que você é essencial para nossa sociedade.

O carro parou em frente a um prédio enorme, que mais parecia uma espécie de igreja com longas colunas gregas e símbolos de todas as formas nas paredes.

José Antônio caminhava embasbacado pela edificação imponente e cheia de detalhes. Das tapeçarias às molduras dos imensos quadros aos afrescos do lugar, tudo ali exalava opulência. O mais velho, sempre atento, percebeu o fascínio.

— Está vendo? Tudo isso aqui foi construído pelo coletivo. Com o corpo e sangue de pessoas trabalhadoras como você. — José Antônio pareceu assustado e o velho riu, passando o braço pelo ombro do rapaz para indicar camaradagem. — Metaforicamente, é claro. Quem construiu fomos nós, mas com muita dedicação e vontade de cuidarmos uns dos outros. E eu sei que tudo isso soa estranho, mas você é fundamental para nossa comunidade e tudo que eu peço é uma chance. Venha participar de nossa celebração e você nunca mais precisará se preocupar com nada.

Depois de um breve passeio pelo prédio, sendo apresentado e muito bem recebido por todas as pessoas que encontravam, José Antônio foi levado de volta para a parada de ônibus perto de sua casa. Os homens disseram que não queriam constrangê-lo nem levantar suspeitas sobre o rapaz, então o deixaram onde ele pediu. Antes do carro sair, o velho disse:

— Nossa celebração será no domingo e ficarei muito feliz se aceitar participar. Não consigo enfatizar mais o quanto nossa comunidade precisa de pessoas esforçadas como você. Aqui, fique com meu número. Se decidir vir, me avise que este carro virá buscá-lo.

Então o carro partiu.

José Antônio chegou em casa e tentou processar tudo que acontecera naquele dia. A demissão do trabalho para ser substituído por uma máquina, como manteria a biblioteca comunitária agora? Aqueles ricos excêntricos com todo aquele luxo. Aquilo só podia ser uma pegadinha.

Precisava de um café para clarear a mente.

Mas era possível, não era? Todo mundo ouve falar dessas sociedades que você só entra por convite e que todos se ajudam. Se tem pessoas como ele ali na comunidade, nada impediria que houvesse também alguns ricos caridosos. Então por que ele estava tão inseguro? Após ponderar um pouco percebeu que, de alguma forma, aquilo conflitava com os ensinamentos de sua mãe para não aceitar presentes de estranhos.

— Ora, mas eu não sou mais criança!

Só depois de provar o café percebeu que colocara sal em vez de açúcar.

— Mas que droga!

Ainda assim, bem lá no fundo, ele não deixava de alimentar uma esperança. Além do que, não era mais menino e já podia tomar suas decisões de em quem confiar. Se conseguisse qualquer coisa deles, nem que fosse um trabalho, já estaria ótimo. Mas senão… depois de tudo que viu, tinha certeza de que pelo menos algumas contas de luz não seriam nada para o dinheiro daquela gente. Tentaria descolar algum apoio. Precisava de toda ajuda possível para manter seu projeto na comunidade.

Já no domingo pela manhã, mandou uma mensagem. E acreditou que o velho estava realmente feliz com o aceite do convite. Na hora marcada, na parada de ônibus, o carro preto parou para buscá-lo. Em pouquíssimo tempo, já haviam atravessado a cidade e estavam de volta àquele bairro.

A recepção foi bastante calorosa. Todos pareciam ansiosos para recebê-lo e José Antônio começou a gostar da hospitalidade. Estava cada vez mais convencido de que todos eram muito unidos e preocupados uns com os outros. Alguém lhe trouxe uma taça de vinho para comemorar sua participação na celebração. José Antônio nunca havia bebido algo como aquilo. Era um sabor maravilhoso, mas, já no segundo gole, o jovem caiu.

Quando seus sentidos começaram a voltar, José Antônio ouviu um discurso exaltado.

— Este, meus irmãos! É um homem bom! Jovem. Trabalhador. Que se importa com sua comunidade e se esforça ao máximo para vê-la florescer!

As palmas ecoaram pelo salão.

O rapaz, ainda zonzo, percebeu que estava escorado em uma pedra, exposto como se estivesse em um imenso pedestal diante de uma multidão. Não caía porque grossas tiras de couro envolviam seu corpo e o mantinham próximo à parede.

O velho continuava seu falatório.

— Este homem não caiu em nenhum vício! Ele acorda às cinco da manhã e enfrenta duas horas de condução para o trabalho todo santo dia! E como se não bastasse, ele ainda faz outros trabalhos por fora para manter um projeto paralelo de biblioteca para as crianças de seu bairro. É, ou não é um exemplo de virtude para nossa comunidade?

O mundaréu de pessoas confirmou em uníssono.

José Antônio se sentia cada vez mais tonto e achava que desmaiaria mais uma vez. Foi então que olhou para seus braços e percebeu tubos de hospital ligados às suas veias que pareciam drenar o sangue para algum lugar.

Enquanto isso, o orador continuava.

— E foi este homem bom que se prontificou a estar aqui conosco esta noite! Será a partir do sacrifício deste bom homem que nos livraremos dos nossos pecados! Que seu sangue e sua carne nos redimam da nossa imperfeição e dos nossos vícios! Venham! Regozijem-se naquele que veio para nos salvar!

Antes de desmaiar de novo, José Antônio viu a multidão se aproximar. E eles traziam garfos e facas.

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nilo nobre
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Arqueólogo, Historiador e aprendiz de escritor e quadrinista. Brazilian Archaeologist, Historian and aspiring writer and comics artist.