Um r no meio

Lila Andreoni
Revista Mormaço
Published in
3 min readSep 23, 2021

--

Há quem, movido pela fúria amorosa, goste de violentar objetos ao chão. Quantos habitantes pacatos de escrivaninha já tombaram em um jato; quantos copos atirados em paredes, corpos estilhaçados; quantas louças e talheres receberam a raiva destinada a um homem. Cena clichê das novelas. Quando bate a onda colérica, meus neurônios argumentam que o melhor a fazer é organizar a casa. Não muito original, tampouco feminista, mas bem informada: pesquisas americanas me enquadram como emocionalmente produtiva. Padrões à parte, cada coisa em seu lugar talvez o coloque de volta ao meu lado. Uma questão de lógica. Hoje é sábado e ele não aparece desde a semana passada. Acordei na bagunça.

Arrumar é amar com um rumor embutido no meio. Começo pelos sapatos em compasso sensato. Dobro as camisetas em métrica. Um decote retoma uma investida. Uma manga, um abraço. Tento guardar minha irritação no fundo da gaveta de pijamas escura: preciso que adormeça, silencie muda. O rancor se rebela, deseja a barbárie rasgada da cômoda das calcinhas: que urra!

Armar é amar com um r sem rumo no meio. Fonema que vem da garganta e até os bichos o falam quando tomados pela ira. Barulho do skate no asfalto. Ruído entre ele e eu. Meu armário está em luta armada. A classe das mini-saias e dos tomara-que-caia estão unidas pelo rompimento lascivo; por uma briga que terminará com o estrondo da porta da sala a assassinar os últimos trocados de carinho. Os sutiãs já estão engajados desde 68, prontos para incendiar. Na parte conservadora, casacos, camisas, vestidos rodados e calças de moletom vestem esta mulher que espera paciente e sonolenta por um homem; distraída pelos afazeres domésticos. Surda.

Arruinar é quase amar a ruína. Entre o sono e o sexo, há uma guerra de oligarquias que me habituei a resolver com inteligência. A inteligência é essa que se oferece como conciliadora em um conflito. À la Getúlio, centralizo o poder e modernizo a economia. Talvez o que me falte seja alguma roupa de neoprene, um pouco de tecnologia. Nada que uma ida ao shopping não resolva: medida populista. Agrado, assim, golas rolê e cintas-liga. Reparem que a inteligência é traiçoeira; tem ao mesmo tempo algo de esperto e de estúpido. Foram os inteligentes que disseram que não haveria fascismo no Brasil. Mark Zu…, gênio de nome difícil. Eles são superiores com sua aparência cheia de estatísticas e ideias ouvidas, talvez roubadas e mentidas. Na falta delas, impostam falas sobre mimimi e fazem acordo com o centrão. E, claro, são donos de grandes fortunas. Nada que impeça a rusga. Getúlio, conciliador inteligente, acabou arruinado; deixou-se levar pela irrazão abrupta de sua cueca: burra?

Nua, não sei o que vestir. Há algo em comum entre sofrer o abandono de um grande amor e pertencer a um povo dividido: a compra tola de qualquer discurso barato por medo de cindir. Assim, uma ideia besta pode bastar: se ele não se chamasse Raimundo, eu seria feliz. Ou uma pretensão arguta: melhor partir ao meio de uma vez, arrancar esses érres errantes do meu caminho, letra bruta.

Quando ficar velha, vou me lembrar do meu queremismo novo; ainda que a República permaneça Velha e o novo nunca venha. Quero amar sem tanto arruinar, quero vagas as vagas ocupadas por qualquer gente do tipo Vargas.

--

--