Um texto todo meu

Mônica Silva
Revista Mormaço
Published in
4 min readJul 1, 2024
São Jerônimo escrevendo (1607), Caravaggio

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

(Fernando Pessoa)

Na próxima aula devíamos narrar uma experiência corpórea que se articulasse à nossa pesquisa. A ideia era recuperar uma lembrança física que se relacionasse ao nosso tema ou objeto de estudo. “Podem até inventar uma memória, personagens, como fez Virgínia Woolf no ensaio Um teto todo seu”, a professora sugeriu.

Passei a semana ruminando a proposta. De saída descartei a possibilidade da invenção (persegui minha verdade tempo demais para recuar agora). Muitas perguntas derivaram dessa provocação. Como me iniciei na leitura e na escrita? Que lugar posso reivindicar? Onde pertenço senão ao nome que me cicatrizou desde a promessa do parto? Sei apenas que escrevo com o corpo. Esse corpo que já foi moeda e hoje é palavra, porque na palavra descobri outro tipo de troca, libido, aproximação. A escrita me expõe enquanto me protege. Pelo verbo recorto a porta nos meus muros e assim posso transitar para fora das minhas incertezas. Escrevo também numa tentativa de me fazer menos fragmentada, embora saiba que a dispersão é inevitável no nosso tempo. Registro o cotidiano para dar notícias minhas ao eu-futuro.

Acontece que meu corpo tem reclamado cuidados nos últimos anos, as dores se acumulando nos músculos, nas articulações, no ventre apodrecido. Eu nunca tinha atinado para os sentidos de ter um útero até precisar revirá-lo. Estou grávida de morte. No terreiro me falam de larvas astrais, baú de mágoas, sagrado feminino dilacerado. Bem, talvez eu esteja exagerando. Não chega a ser uma castração; está mais para faxina. Os médicos aspiram cistos, sangue coagulado, tentam preservar um resquício ao menos da minha fertilidade. Podem tirar tudo, repito. Filhos nunca foram uma opção e a velhice não me assusta. Eles me ignoram, afinal o que saberia uma mulher de trinta e poucos anos sobre o próprio desejo?

Por falar em velhice, ontem encontrei este cabelo branco, o meu primeiro, bem na linha da testa. Celebrei a chegada de uma nova idade, anunciada não pelo calendário, mas pela cronologia guardada nos espelhos. Sempre quis ser grisalha, da mesma forma que sempre quis usar óculos, como se uma senhorinha tivesse morado toda a vida dentro do eu-menina. O medo da velhice me é completamente estranho. Mas a aspereza desse fio prateado revela outro medo: o de passar pela vida em branco, sem me deixar afetar. E a cada tentativa de capturar esse receio nas grades da linguagem, percebo entre a mão e a página uma boca imensamente aberta, pronta para devorar meus pensamentos.

Algo de sublime escapa se tentamos equilibrar todos os pratos, prazos, preços e pecados. Só espero ter acordado a tempo de tirar a máscara, Pessoa. A máscara que vestimos para enfrentar o trânsito, o trabalho sem propósito, os boletos, a saudade inconfessa, a vontade de andar descalça no barro e de poder chorar em qualquer lugar.

Na beira da identidade, prestes a cair no abismo do não-eu, a menina que eu fui brinca sozinha no piso de cimento grosso, esperando de mim um olhar feito os filhos esperam dos pais exaustos alguma migalha de afeto. Se o inconsciente for nossa criança trancada no porão a sete chaves, sob a máscara de adulta, é escrevendo que pego essa menina no colo. Escrevendo agradeço a ela por ter me trazido até aqui.

Tenho pensado que estar presente no texto enquanto corpo escrevente tem muito a ver com vulnerabilidade. É aprender a dançar com a própria dor, a rir com seu ridículo. Até aqui, nenhuma novidade. A graça está no eco de algumas obras quando nos convidam a assistir essa dança. Viramos testemunhas, mas de algum jeito, dançamos também. Como eu poderia não me interessar por outras escritoras que produzem a partir do eu-menina?

Não terminarei este texto hoje. Talvez ele nunca acabe, eu deveria ter avisado no começo. Preciso mesmo é aceitar as verdades cíclicas, as perguntas sem resposta, as frases pela metade, a casa desarrumada, o serviço pendente, o caderno com as últimas folhas vazias.

No dia da aula, ouvi os relatos dos colegas e guardei meus rascunhos. Este fica entre nós.

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Mônica Silva
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Escritora, revisora e leitora, necessariamente em desordem