Uma epidemia de pessoas que não sabem melhor de si

Thaíla
Revista Mormaço
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3 min readMar 18, 2022
Aracajú — SE / Fotografia de Thaíla Campos

Quando chegou a segunda-feira não conseguia nem respirar. Marcou um psiquiatra. Uma, na verdade. Muito bem indicada. “Bons resultados” — foi o que disseram. Só tinha vaga para abril. 35 anos assim, o que são mais 15 dias. Talvez a diferença entre viver e morrer. Mas não ia pensar nisso. Não ia pensar em nada. Só respirar, se conseguisse respirar já estaria melhor do que estava na segunda.

Abril chegou e no elevador apertou o “02”, a porta fez que ia, mas não foi. Apertou de novo, vermelho. Agora foi. A cabeça, é esse o problema, sem isso estaria tudo bem. Dói tanto, não tem condições de alguém viver assim, bem. Viver bem. Viver até tem. Mas bem? Não tem como. Se somar, enxaqueca, ansiedade e ressaca, sobram uns cinco dias bons por mês. Cinco dias para se sentir bem — Foi o que disse para a psiquiatra. Três dias para tirar o atraso das atividades que andou transferindo eternamente para os 10 próximos minutos, simplesmente porque existir era insuportavelmente pesado e tudo que podia fazer para não morrer era respirar, se vacilasse perdia o ritmo da respiração.

— Sinto que vivo para entregar para os outros algo que não sou e para falar sobre coisas que não tenho.

Pegou todos os seus traumas de danoninho e jogou por exatas duas horas e meia em cima daquela senhorinha.

O que é uma mãe que não deixa nada além de descendentes?
Para que serve um pai?
Porque meu irmão é mais amado?
Quando vou parar de ciscar pelas migalhas de afeto do outro?”.

Sertralina 25mg por três dias, 50mg por mais dois, depois 75mg por sabe-deus-lá-quanto-tempo e alprazolam para “se muita angustia”. Riu por fora dessa última parte; por dentro era só desespero. Por quinze dias nada mudou, mas ainda assim tudo que acontecia era “sou eu ou o remédio?”. Com o tempo os sentimentos foram sumindo. Foi como disseram “você ainda vai pensar, mas não vai sentir”. Dito e feito. Pensava com as mesmas palavras só que agora não faziam eco, morriam por dentro antes mesmo de tomarem forma.

Antes sobrava tanta coisa que chegava transbordar, respingando em quem estivesse por perto meio desavisado. Agora falta alguma coisa, o clássico vazio, o buraco sem fundo deixado pela ausência dos sentimentos conflitantes. Sabia que deveriam estar ali, o nó na garganta, o aperto no peito, as ideias que se atropelam, o desespero da existência sem sentido, a dor do amor que não existe mais. Não vinha nada. Tudo tamponado pelas 75mg diárias de sertralina.

Virou estatística na epidemia de pessoas obstruídas pela urgência do não-mal-estar.

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Thaíla
Revista Mormaço

Baiana de Salvador, psicóloga de formação, psicanalista de desejo e escritora de gaveta.