Uma pirata

Lucas Belo
Revista Mormaço
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3 min readJul 29, 2021
Vivian Maier — Untittled, 1955.

Todos os dias brinco de caçar tesouros nas ruas do meu bairro, faço que sou uma pirata, com duas mãos e dois pés inteiros, diferente dos piratas das histórias, que em decorrência de suas aventuras perigosíssimas em alto mar, envolvendo monstros e embates épicos, ganham mãos de gancho e pernas de pau como se fossem varais. Me considero mais esperta que eles, pois ando sempre com um pedaço de pau na mão para cachorros ferozes e homens tarados e além do mais, estou sempre próxima aos melhores supermercados e estações de trem da região para me proteger das tempestades e de policiais. Com isso sou praticamente imbatível.

Toda a minha tripulação está dentro de um rádio palito, um aparato que poucos piratas podem se gabar de possuir. Encontrei o meu sozinha, seguindo meus instintos, cavando fundo no lixo de um condomínio chique e procurando confusão com os moradores, que, na minha imaginação, são monstros marinhos terríveis capazes de amputar pernas e braços para defender suas lixeiras fétidas. Eles disseram como num rugido “Custa organizar o lixo depois de vasculhar, menininha mal criada?!”, mas pirata nenhuma recebe ordem calada, muito menos ofensas, então respondi “Eu não vou gastar meu tempo empilhando o papel que vocês limpam o cu!” — infame e impetuosa como Anne Bonny ao sangrar uma espada no coração de um homem quando foi desafiada — “Se o lixo é tão importante para vocês a ponto de separá-los por cor e tamanho, então tomem, levem de volta para a casa!”, assim, guardanapos, embalagens, restos de comida, notas fiscais e garrafas pets voaram sobre as cabeças brancas dos monstros guardiões, sobrando junto ao chorume, mas em bom estado, o tesouro mais legal e útil do mundo.

O rádio palito me informa a previsão do tempo, os trechos congestionados, hora, data e minha estação de rádio favorita ainda toca “Bombtrack” do Rage Against The Machine repetidas vezes para animar o meu dia. Levo ele preso no pescoço por uma gambiarra que fiz com o fone de ouvido, como se fosse uma bússola 一 não gosto de escutar música no fone, porque quem está no comando de um navio não pode nunca estar distraído, por isso deixo no alto falante. Às vezes, quando preciso tomar uma decisão importante como tocar a campainha de um desconhecido e sair correndo, ou mesmo entrar no quintal de alguém e pegar uma roupa do varal, recorro às próximas palavras do Toninho, o meu tripulante-radialista preferido e faço delas um conselho, pois quase sempre ele me incentiva dizendo “aonde quer que você esteja, você está bem sintonizado!”. Sigo.

Fico pensando: no mar, depois dos piratas encontrarem ouro e pedras preciosas lá no fundo ou escondidos em uma ilha misteriosa, eles passam dias a fio gastando sua recém fortuna em uma cidade desconhecida e só depois é que precisam pensar na próxima aventura. Por outro lado, na rua, a cada dois dias repõem mais lixo, os tesouros vão se tornando cada dia mais ordinários, assim como os seus monstros-condôminos-guardiões, sem graça. Contudo, na região do condomínio onde encontrei o meu rádio palito, as lixeiras já se encontram trancadas como verdadeiros baús de tesouros, alguns têm lanças e inclusive ficam na visão de uma câmera de segurança. Essa brincadeira não tem fim e eu sabia que eles não deixariam perder a graça.

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Lucas Belo
Revista Mormaço

Escritor, educador social e estudante de Letras (UNIFESP). Comprometido com as histórias que vivem debaixo do pé de umbu ou perdidas nas vielas da cidade.