Vou para o céu sim, senhor.

Rafaela Maria
Revista Mormaço
Published in
4 min readJul 21, 2022
fotografia: Rafaela Maria

Tem essa mancha preta que nasce dos meus dedos e que não consigo mais dar fim. Não sei se foi alergia ou o quê, mas essa escuridão vem crescendo e se apossando das minhas mãos como se elas já não tivessem dona. Leinha disse que isso é pecado, que Deus está me castigando e que eu deveria visitar um amigo seu pra ele me dar um bom banho de reza. Não adianta falar que é loucura porque não é, só sei que pecado não pode ser, porque eu aprendi que o pecado começa nos olhos e não nos dedos. E meu dedo tá apodrecendo, porra.

E esse negócio de pecado já me deixa doida das ideias. Onde já se viu mulher velha pecar? Passo o dia todo fazendo as mesmas coisas, folheando os mesmos livros e escrevendo as mesmas prosas cachorras como se algum dia alguém fosse se interessar por um vira-lata. Chega disso, Leinha, eu não peco e ponto final! Isso deve ser alguma alergia a esses terços que tu me fazes rezar todo santo dia como pagamento em uma cadeira bacana no céu. Já basta aquele infeliz vindo todo santo dia me falar sobre aceitar Jesus antes que Ele volte.

Parece que velho atrai essas coisas mesmo, essas enfermidades que ninguém nunca viu, umas tosses estranhas e alguns malucos que querem porque querem me colocar no céu. Por que eu não iria para o céu? Casei, tive filho, não traí, não matei, não fiz nada, nada, nada. A única coisa de errada que fiz foi me esquecer que daqui é direto pro caixão e que vida mesmo eu só tenho uma. Essa vida cheia de carne, de lambidas e palavras feias de pronunciar quando não se está na cama.

E eu passo o dia todo assim, olhando pra essa mancha que vai tomando conta das minhas unhas e ultrapassa os limites dela aos poucos. Vai crescendo, criando formas, jeitos e manias, como o meu esposo que se instalou na minha cabeça e de lá não quis sair mais. É engraçado como ninguém tem mais limite de corpo. Essa mancha pegou meu dedo pra ela; meu marido, a minha cabeça; meus filhos, um peito cada; e Deus parece que já está arrumando uma caixinha de mdf pra colocar minha alma lá dentro, enjaulada e pronta para a próxima.

E, mesmo com tudo isso, a única vontade que tive a minha vida toda foi de pintar as unhas de vermelho. Aquela cor de sangue bem viva, selvagem, coisa de puta mesmo. Eu queria pintar minhas unhas de vermelho e nunca tive a coragem de bater meus pés no chão e dizer isso em alto e bom som. Desgraçados! Agora meus dedos estão com essa mancha preta e se eu pintar não vai ficar parecendo que cravei minhas unhas no pescoço de Leinha durante a missa. Mulherzinha dissimulada e cheia de santidade pra lá e fazer o bem pra cá. Passei toda a minha vida ouvindo essas besteiras dela e acatando tudo só pra ver no que ia dar, por isso sou assim, sem história própria e cheia de verso sonso.

Tem essa mancha preta nos meus dedos, nos meus peitos e na minha cabeça que lateja, lateja, lateja muito. Chego até pensar que isso é coisa da minha imaginação e que é culpa minha deixar com que essas manchas tomem conta do meu corpo. Se eu gritar pra essas malditas bem alto, bem feroz e pintar essas unhas velhas e fracas de vermelho eu viro mulher. Uma mulher de verdade. Mulher que bota chifre, que chupa e geme alto. Mulher que vai crescendo do peito pra fora e derrete as alianças pra fazer um par de brincos enormes e redondos. Mulher que diz que tanto faz não existe e que quer isso e ponto.

Fui como besta pra esse banho de reza da Leinha e quando o Santo olhou para os meus dedos como se olhasse para o fundo da minha alma eu entendi. Bem que Leinha me disse que eu não deveria mais escrever esses textos cheios de beijos apaixonados e firulas de amor. Santo disse bem claro, bem alto e com aqueles dentes amarelos que

— seus dedos estão chorando porque os seus olhos já não são mais seus.

Leinha filha da puta.

--

--

Rafaela Maria
Revista Mormaço

Estudante de Letras pela Universidade de Brasília, designer gráfica, fotógrafa e escritora de contos, poesia e críticas literárias. ig: @rafaelamria