What Have We Found Each Other

Leonardo Passovi
Revista Mormaço
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15 min readJun 10, 2021
Casablanca (1942); Quem não gosta de uma pieguice?

No dia seguinte ao Natal de 1996, fui numa loja de discos/livraria/café comprar uns presentes atrasados pros meus queridos, mas não tão queridos assim. Queridos o suficiente para eu me esconder atrás da desculpa de que estava com pedra no rim. E lá fui eu atrás de alguma coisa que pudesse interessar a alguém.

Os livros, eu comprava um bocado de coisa que fosse interessar a mim. Só na hora de definir quem eu iria presentear com qual, é que eu via, entre os adquiridos, o que combinaria mais com cada presenteado — isso se eu não quisesse ler antes. Os discos todos eram coisas que eu já ouvi, senão não tinha presente certo. E a decisão de quem ganharia qual baseava-se nos fatores mais ridiculamente aleatórios.

Cheguei perto de uma maquininha de leitura de código de barra, com headphones pra uso comunitário, a fim de reouvir aquelas prévias de 1 minuto por faixa do disco Zooropa, do U2. De junto, ouvi duas grávidas conversando sobre os significados dos nomes que dariam a seus filhos, já na iminência de parir, e pensei: esse disco vou mandar pra minha mãe. Só não consegui entender nada que elas falavam porque eu não falo francês, e nessa época eu estava morando em Paris, então ficou tudo no campo da suposição.

Eu acenava positivamente com a cabeça a cada uma das canções do álbum, confirmando que era aquilo mesmo. Mas não consegui conter o espremer de olhos fruto do prazeroso sofrimento que a faixa 5 [Stay (Faraway, So Close!)] me causava. Tomei um susto quando uma criatura me cutucou e disse:

— Essa eu senti aqui — e apontou pra a região central da caixa torácica.

— O fone tá vazando? — perguntei.

Ela riu e eu nem me toquei que a gente estava falando em português. Quando eu falei “oxe, peraí”, ela disse que “brasileiro a gente reconhece pela cara.” Como cortesia, fiz algum comentário breve sobre aquela canção pintar em torno de mim a sensação de estar bebendo whisky dentro de um globo de neve. Ela deu continuidade à imagem, sugerindo que o refrão seria o momento perfeito pra tacar o cantil de whisky contra a cúpula de vidro inutilmente. Mas deve ter sido alguma coisa que ela perguntou sobre algum livro que eu estava carregando, ou algum comentário que fiz sobre o desenho a caneta que estava na mão dela, que nos levou a sentar numa mesa ali mesmo e começarmos a conversar.

Ela, tanto quanto eu, tinha ido morar temporariamente na França com a esperança de se virar só com o inglês, sabendo apenas algumas frases genéricas e básicas do idioma local. Só que ela sabia bem mais do que eu, porque ela já estava nessa há mais tempo. Eu ia tipo um morcego ébrio: voando atabalhoado, batendo em tudo até achar o caminho certo. Isso sem falar no fuso horário, que lutava capoeira com meus horários de sono. Ela também era uma pessoa noturna, mas disciplinada a hábitos diurnos.

Não me pergunte como, mas num piscar de olhos estávamos fazendo um paralelo entre a corrupção política em São Francisco do Conde-BA e a corrupção do empresariado do ramo tecnológico na Baía de São Francisco, na Califórnia. O volume de semelhanças era bem menor do que a minha vontade de arrancar um riso dos lábios dela. A conversa durou até um de nós se lembrar que tinha algum compromisso, e nós, timidamente, nos despedirmos.

No dia seguinte, fui lá comprar mais algum livro que ficou faltando pra mandar pra algum familiar meu e me deparei com ela tendo muita dificuldade pra decidir entre dois livros de temas marítimos. Eu não reconheci o rosto dela de imediato, mas não é todo mundo que anda na rua de sobretudo, echarpe, salto alto e skate. Sim, você leu certo: um skate. Ainda assim, era dona de um porte altivo. E eu me aprocheguei de um jeito parecido com o que ela tinha feito comigo na véspera e falei:

— Cuidado pra não demorar demais pra escolher e ficar a ver navios.

Acredite, ela nunca tinha ouvido essa expressão. Falamos um pouco mais sobre o mar, sobre barcos, sobre os tão altamente higiênicos banheiros náuticos, sobre a aversão dela a frutos do mar (um ponto um tanto quanto fora da curva) e sobre mais um bocado de abobrinha. Mostrei a ela o trecho que a máquina permitiu de É Doce Morrer no Mar, de Caymmi. Na hora de ir embora, voava ao nosso redor a mosquinha da vontade de conversar um pouco mais, sobre o que quer que fosse. E tentou pousar no meu croissant. Afugentei.

A tarde do dia 28 foi a terceira seguida em que eu fui no mesmo estabelecimento, dessa vez tentando disfarçar certa afobação. A esperança de encontrá-la por lá se misturava com a autocensura de me sentir um stalker. Mas eu não andava vigiando ela. Não sabia nada de seu dia-a-dia, de sua vida íntima e nem tampouco lugares que frequentava. Estava apenas jogando na loteria dos esbarrões. Me deparei com ela de butuca, virando o pescocinho de 5 em 5 segundos, fiscalizando a porta na hora que eu entrei. Foi muito bom, porque é aí que fica chato pra você que está lendo. Vem aquela sensação de “já sei o que vem pela frente.” E talvez você saiba mesmo, seu leitor arrogante. Mas, condescendentemente, continue.

Nem sei dizer direito sobre o que a gente falou nesse dia, mas sei que falamos bastante, mesmo não bastando pra mim. Era muito bom ver o diálogo fluir tão bem. Era muito bom falar em português com alguém. Falamos de tudo um pouco. Lembro de falarmos sobre o que aprendemos estando ali até aquele momento; de falarmos sobre os franceses. De vez em quando até falávamos em inglês um com o outro, como forma de provocar quem estivesse ouvindo nossa conversa. A ideia naturalmente surgiu após meu comentário sobre o ressentimento que os franceses têm para com falantes do idioma anglófono dentro do território deles.

O entusiasmo com o qual ela parecia responder às inegáveis frivolidades que eu colocava em pauta me fazia suspeitar que ela queria dar continuidade àquela conversa tanto quanto eu. Às vezes fazia até parecer que estávamos falando de coisas importantes! Dava a impressão de que todos os assuntos do mundo cabiam e deviam ser inseridos naquela conversa. Tinham mil coisas pra gente dizer, o difícil era saber terminar. E isso me trouxe a certeza de que, no dia seguinte, numa faixa de horário parecida, ela estaria lá de novo.

Depois que eu terminei de rondar os corredores entre as prateleiras de discos e livros à procura, Mark, o multifacetado atendente/gerente/faz-tudo do estabelecimento me chamou na surdina e balbuciou com um sotaque carregadíssimo:

— Tis is for yu.

E me entregou um envelope sem nome que tinham deixado na mão dele. Era uma espécie de questionário contendo todas as perguntas que ela tinha planejado para uma eventual próxima vez em que nos encontrássemos, acrescido de mais alguns comentários sortidos sobre assuntos que tínhamos tratado anteriormente.

Ela dizia, no final, que escolheu escrever porque ia viajar para o Ano-Novo e imaginava que, se eu lá fosse e não a encontrasse, ela dificilmente acharia outra oportunidade de dar prosseguimento ao diálogo. Um pouco hiperbólico e fatalista, é verdade, mas certa ela. E foi até bom esse hiato. Afinal, ninguém consegue ser interessante todo dia, não é verdade?

Daonde veio a certeza dela de que eu passaria por lá, eu não sei. Eu sei é que eu levei o papel pra casa e respondi tim-tim por tim-tim da maneira mais completa e detalhada que achei conveniente. Algumas perguntas eram assustadoramente pessoais, mas o fato de sermos quase que totalmente desconhecidos um para o outro compensava. Transferia tudo pro campo da imaginação, servia apenas para compor a personagem. Eu poderia ter mentido em cada uma delas, criado uma persona inteiramente nova, mas falei a verdade. Foi porque na hora não bateu o ímpeto criativo suficiente. Logicamente, cuidei de rebater as questões uma por uma, como se jogássemos frescobol.

Isso me tomou umas duas horas e, no dia 02 de janeiro de 1997, lá estava eu deixando o envelope — o mesmo envelope, nada de nome — nas mãos de Mark. Dia seguinte, no mesmo horário, fui buscar a resposta dela e sentei pra responder ali mesmo. Fiquei torcendo pra que ela não passasse por lá enquanto eu escrevia. Mas eu já devia suspeitar que ela não só passaria, como olharia pra mim e não me cumprimentaria. Pirraçando e respeitando meu espaço ao mesmo tempo. Matando dois coelhos com uma caixa d’água só.

Enquanto havia perguntas a serem respondidas e histórias a serem contadas, a conversa ia mantendo a si própria, como se fosse autônoma, um espírito independente de nós. E assim íamos nos respondendo e correspondendo dia após dia.

Conforme as primeiras semanas do ano foram passando e o motor da vida urbana aqueceu até atingir a velocidade de cruzeiro, nosso comportamento sedimentou um certo padrão. Os momentos do dia em que íamos lá buscar a correspondência nunca se interseccionavam. Era como se assumíssemos turnos, guardando uma mesma mesa de livraria. Preenchendo papéis que eram guardados num mesmo envelope: eu de tarde, ela de noite. Ela era bem mais atarefada do que eu. Frequentemente mencionava como não tinha tempo para mais nada ou mais ninguém. Sabe Deus como arrumava tempo pra aquilo. Lucky me.

No malabarismo dos tópicos, algumas bolas caíam e outras novas iam entrando mais e mais, até que o envelope ficou robusto demais. Um dia cheguei lá e Mark me entregou um fichário, ao invés do envelope. De vez em quando, a fim de contextualizar o assunto, ou pra fazer algum vexatório jogo de palavras, ela deixava indicações de músicas. Como mal tinha internet na época, e eu teria gastado uma fortuna em CDs para que as piadas infames ganhassem vida, nosso adorável mensageiro, já habituado com nosso contato um tanto unusual, reconfigurou uma das máquinas de leitura de código de barra, de modo que nos permitia ouvir as canções inteiras, não só as prévias de 1 minuto.

A essa altura, algumas coisas peculiares vinham acontecendo. Já não via o rosto dela fazia muito tempo. Isso tirando eventuais fotos da infância que deixássemos no fichário pro outro ver. Mas, se eu passasse por ela na rua, e não tivesse uma placa escrito A MENINA DAS CARTAS apontando pra ela, eu certamente não saberia dizer. Se tentasse, de olhos fechados, recobrar na lembrança suas feições, não me aparecia nada mais que uma silhueta, como que atrás de uma cortina amarela, quase transparente, meio alaranjada pela luz que provocava a sombra. Parecendo um pouco a capa do Songs in the Key of Life, de Stevie Wonder, mas não muito. Ainda assim, ela estava em todo lugar.

Pelo menos umas três vezes na semana, eu me esbarrava com a presença dela de alguma forma diferente. Às vezes, quando tocava Isn’t She Lovely no rádio (nunca reparei que era tão frequente). Às vezes, na forma de uma ema. Você sabia que existem emas na Île-de-France? Eu não sabia até ela me contar, e só depois disso foi que vi uma. Vai ver era ela que estava mantendo todas em cativeiro e deixou aquela escapar pra contextualizar a informação nova. Não acho que ela me julgaria por pensar isso. Tenho certeza.

E essa foi a primeira de várias coincidências. Fosse nos dias de hoje, eu suporia que era apenas o algoritmo todo trabalhado no big data. Só que, vinte e quatro anos atrás, não tinha como. E mesmo que tivesse, eram coisas muito, muito específicas. Não é como se ela comentasse que come pão no café da manhã e eu viesse de lá com um “bicho, você não vai acreditar!…” ou como se alguém falasse de jet-skis ou temakis e aparecesse uma propaganda logo em seguida.

Se servir de exemplo, em uma das cartas, nós falamos em momentos distintos sobre Woody Allen; sobre eu estar lendo um livro de Assis’ Axe; e sobre Susan Sontag, uma escritora que protagonizou uma anedota desastrosamente quase romântica que ela me contou. E, na mesma semana, eu fui golpeado por uma entrevista de Woody Allen, que deveria tratar de um recente lançamento dele, na qual ele citava um comentário de Sontag sobre um livro de Machado de Assis. Acho até que ela prefaciou uma obra dele. Já tá bom ou quer mais?

Fosse um ano antes, esse detalhe me passaria totalmente despercebido na entrevista. Eu nem sabia quem era Susan Sontag até ela me dizer. Ela me disse muitas coisas. Um pouco de tarot; biopolímeros; que o segredo da jardinagem está em sussurrar elogios para as plantas; garlic soup recipes; muslim names’ meanings; a elegância dos desmaios… Mas aparecer tudo junto assim, não há quem me convença de que é normal.

Isso, quando junta com todos os outros uncannily accurate incidents com que eu me deparava — cavalos com nomes de títulos monárquicos, relâmpagos, Alex DeLarge debaixo de uma imagem de Nossa Senhora, fancy shoes, iogurtes, horários em forma de versículos bíblicos, pôsteres de filmes em locais inusitados —, me dava a confortável sensação de estar cercado por ela pelos 7 lados.

Eu sei que eu deveria ter detalhado mais para você, que presta seus olhos a essa leitura enfadonha, entender melhor a que eu me referia por “coisas peculiares acontecendo”, mas nem eu entendi, bicho. Era assim meio blurry. Só estando lá pra ver que fazia sentido. Não me lembro direito se fui eu que resolvi compartilhar meu assombro, ou se foi ela que trouxe o tópico por iniciativa, mas lembro que ler que ela também vinha sendo perseguida por este tipo de coincidência me deu goosebumps (the good kind). Lá por um mês de troca de correspondências diárias, isso já era parte do pacote. Três dias sem já era muito. Confesso que devo ter forçado a ocorrência de uma ou duas, mas ela logo me desmascarava.

Em algumas ocasiões, fantasiamos a possibilidade de virmos a nos tornar pessoas notórias, relevantes, famosas no futuro, de modo que aquele material, nas mãos de Mark, representasse uma oportunidade lucrativa. Servia como um divertido exercício de divagação, tanto quanto como um sustinho pro caso de ele inventar de bisbilhotar. Mas é claro que ele devia ler (o trabalho dele devia incluir ócio na descrição de cargo). E, lá, ele ia encontrar um manual de idiotice sem igual. Duas pessoas com talento para falar merda sobre merda. Fazendo sinapses inúteis sobre assuntos aparentemente desconexos and finding amusement like children playing with sand. Será que isso vende?

Claro que a gente falava sobre temas não-imbecis também, antes que vocês achem que era só presepada. Trocávamos indicações de livros, às vezes. Filmes também. Ela era um pouco mais versada em documentários, while I’m a man of fiction (and, frankly, got no patience to french people whispering on the screen).

Isso sem contar as diárias indicações de músicas, motivadas pelo que quer que fosse. Seja por ser bonita, agradável, excessivamente estranha, por ter lembrado do outro, por achar que tem a ver com o gosto do outro ou, melhor ainda, com o intuito que eu citei anteriormente. Contextualizar assuntos ou vexátorios jogos de palavra viraram uma via de mão dupla in no time. Quando se vai esperando uma idiotice é que se pode encontrar coisas valiosíssimas.

Podia não ser a especialidade dela, mas não posso negar: she had quite a way with words. Se já disse isso em algum lugar lá em cima, não me envergonho de repetir (o inconsciente trabalha de maneira redundante), mas ela embutia e extraia poesia de qualquer coisa. A coisa mais insignificante parecia interessante quando disposto nas palavras que ela escolhia. Houve um momento em que, qualquer assunto que fosse, eu guardava pra tratar com ela. Não que nessa época eu tivesse muita gente com quem conversar. Só quando ela vinha falar de guerras, tipo o conflito que acontecia já há 6 anos na Iugoslávia, é que eu achava deveras enfadonho. Esquivava do assunto com uma reflexão levemente genérica. What a time to be alive, and yet, what have we found each other.

Arrumávamos todo tipo de artifício para dar cores novas à interação. Começávamos uma frase and, by the end of it, had switched the language without even noticing. Colocávamos a voz de um narrador em terceira pessoa, criávamos cenários, reeditávamos fábulas, como a do Lobo e a Raposa, dos Irmãos Grimm, mas sem qualquer fidelidade à dinâmica da história original. Ressignificávamos toda sorte de personagens fílmicos ou literários um no outro.

As feridas de ser quem se é, as anedotas melancólicas ou traumáticas, os episódios envolvendo desavenças, os casos de quando nos magoamos com alguém no passado, a gente sempre deixava pra contar num dia em que nos encontrássemos pessoalmente. E nunca marcávamos. Como quem guarda as despedidas pro dia seguinte à partida do trem.

Cogitei chamar ela pra sair um dia, é lógico. Mas, poderia ser contraproducente tornar as coisas comuns, ordinárias. Desviar do rumo que seguíamos. No dia que cheguei mais perto de sair de casa determinado a sugerir, em carta, um encontro, me convenci do contrário no espelho: “Let’s not go that way”. Porque, daquele modo, nós nos acomodávamos num cantinho exclusivo no pensamento de cada um. Jamais seríamos, pro outro, como os outros são. Não necessariamente seríamos mais, ou menos. Mas, definitivamente, seríamos diferentes de qualquer coisa.

Cheguei também a sonhar com ela algumas vezes. Assim como, dizendo ela, ela sonhou comigo também. Ao contrário dela, que tem uma memória visual estupendamente melhor que a minha, nos meus sonhos ela vinha somente como uma ideia, uma mensagem, nunca em forma de gente. Um dia eu sonhei que ela respondia uma carta inteira minha com uma só pergunta. E, como eu não soubesse responder, nosso contato cessava permanentemente. A angústia só passou de tardinha, quando fui à livraria e achei a página seguinte do fichário recheada de palavras.

Falamos sobre como o fim costumava se apresentar em nossas vidas, em nossas relações. Comigo costuma(va) ser um clean cut, fruto de algum desentendimento súbito. Do tipo que deixa uma perebinha, dessas que coça de vez em quando, mantendo viva a possibilidade de arrancar o cascão. Já ela disse que geralmente encerrava ciclos quando via as coisas perderem o sentido, quando ela se perguntava exatamente qual era o propósito daquilo tudo. E me apunhalou com o exemplo: “é como se eu de repente me perguntasse ‘sério que passei 2 (dois) meses de minha vida dedicando duas horas por dia a responder essa pessoa?’”

That’s when it hit me: it was about time. Inevitably, she had already asked herself that. A clean cut was the only viable option. Nenhuma história tem final agradável. A não ser que você pare de contar antes que ela acabe. No jiu-jitsu, a gente aprende que, pra amortecer uma queda, uma das melhores alternativas é rolar no chão. Se não a melhor. I had to let myself down gently.

Duas cartas depois, quando fui buscar a resposta, perguntei a Mark que horas ela costumava aparecer por lá. Ele me disse que geralmente era umas 2 ou 3 horas depois que eu saía, então eu tinha tempo pra me preparar para o que se sucederia.

Quando ela chegou, estava eu sentado na mesa de leitura com o fichário na mão. Nenhum CD, nenhuma foto antiga, nenhum personagem fílmico ou literário. Não era Rick Blaine versus Marla Singer anymore. Éramos eu, ela e todo o material que nossos punhos deixariam em Paris. Ela adivinhou minha intenção logo de cara, que dessa vez eu responderia a carta ao vivo. Puxou uma cadeira e sentou-se diante de mim:

You have two hours. — that’s what she said.

Achei que deixar tudo pro final seria um tanto quanto antiquado e excessivamente melodramático, então resolvi que o melhor seria encontrar um ponto no meio da carta para informar minha resolução:

— I think we should cease the mail.

— That’s not what I meant.

— I know. That’s what I mean.

And then, hell came out of her lips:

— I agree.

We didn’t talk about reasons. I just kept going through the topics, with the binder in hands, like I was reading tales to a child who already knew the story, and making funny comments along the way. At some point, I asked her what was “hot air”, an expression she had used to define our whole sort of interaction. She told me people in California used that term to refer to any exaggerated talk. In other words, presepada.

I said nothing. I just kept going through the topics, with the binder in hands. Circling around the end, but never droping it. When I realized I had nowhere else to go, nothing else to talk about, no other way to postpone the goodbyes, I, elbows on the table, closed the binder between our faces, using both of my hands, in order to see her image disappearing behind the pages.

Entendo que pode ter sido um tanto quanto frustrante pra você ler até aqui pra descobrir que nada de fato aconteceu na história além de um bocado de conversa. Nenhum conflito desconcertante, nenhuma situação embaraçosa, nenhuma mágoa, nenhum momento de êxtase. Só cartas.

Mas, ain’t it quite something passar dois meses de sua vida dedicando duas horas de seu dia a responder uma pessoa sem razão aparente? Só por mera curiosidade ou divertimento? Eu sei que ela fez pouco caso disso. Mas é que tem vezes que você chega cheio de objetivo pra falar com alguém, espreme igual a uma toalha molhada e dali não sai nada. Tem vezes que você, sem querer, já abre um livro na página certa, sem ter usado marcador nem nada.

Nunca mais joguei na loteria dos esbarrões. We never bumped into each other again. Não cheguei a conhecer a textura da pele dela ou o cheiro. Talvez tenham sido os dois sentidos que mais fizeram falta naquela realidade paralela que nós criamos, cujo forro interno era feito de papel. No room for tears, otherwise it all collapses. Hot air blows cold. Will there be a last letter?

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