Zona de risco

Ramana Bispo Mendes
Revista Mormaço
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4 min readAug 10, 2022
Foto de Wisnu Phaewchimplee

Sempre sonhei em morar numa casa com muitas janelas, por onde entraria bastante luz, e com paredes escuras, em tons de verde. Li em algum lugar que tons como esse representam esperança e valorizo um ambiente agradável, sabe? É para onde nos dirigimos após um desgastante dia de trabalho. Em descanso gostaria de estar num lugar em sincronia com meu estado de espírito, mas… não tive dinheiro para pintar as paredes ainda. Com as novas despesas, precisei focar no mais importante e tudo bem. Só me resta não deixar a casa bagunçada. Isso é reflexo de uma vida caótica.

Olho ao redor e imagino os objetos milimetricamente posicionados. As noites em claro têm me dado tempo para pensar sobre organização e lembrar a falta da pintura. Essa é a terceira vez só hoje que acordo sem ar. Acredito ser o meu cabelo. Ele está tão grande, desordenado e a cada sufoco sinto-o embolando em minha cara, entrando pela boca, entupindo a garganta. Reluto prendê-lo. A cabeça dói bastante por passar o dia com ele amarrado. Mesmo assim, pego o elástico ao lado da cama. Amanhã meu dia será corrido, ter uma boa noite de sono é primordial.

Com o cabelo preso, me concentro na chuva. O barulho da enxurrada contra o telhado me lembra do jornal. Já havia chovido todo o esperado para o mês de abril e as pessoas com moradias em encostas deveriam se retirar desses locais. É uma boa casa, sabe? Ainda que esteja em zona de risco, acho segura. Preciso sentir segurança, afinal é a morada pela qual posso pagar. Tentei solucionar o probleminha dos perigos visíveis fechando as janelas. Só consegui pouca luz e calor. O ideal seriam cortinas finas e claras, mas com todas as novas despesas… Mantive as janelas abertas, sem cortinas, deixando a luz e o vento entrarem. Só parei de olhar para fora.

Pensar sobre as notícias me inquieta. O sono não vem. Caminhar pode ser uma boa opção. A casa não é muito espaçosa. Eu posso andar em círculos, subir e descer as escadas e, olhando por um lado, mesmo não sendo como a dos meus sonhos, ao andejar por ela à noite, todas as coisas parecem escuras. Não em tons de verde, em cinza. E o cinza está perfeito por hora. Deixa o ambiente amplo. As paredes escurecidas se misturam ao negrume do tempo e do espaço, não dá para saber onde elas começam ou quando se encontram com o chão. Só consigo percebê-las tocando-as. Posso senti-las existindo sob os meus dedos. De longe, não sei se indo em sua direção me chocaria contra algo sólido ou se iria de encontro ao vazio. Sem paredes, sem chão, sem rumo…

Levanto. Encontro o interruptor. É melhor caminhar com as luzes acesas. Saio. O corredor. A segurança da claridade desnuda de todas as coisas, a mais dura. A porta do quarto que seria seu. A única coisa verde escuro aqui e o primeiro passo dado rumo à casa que sempre sonhei. Umbral de expectativa jamais corporificada. Respiro. Não posso deixar romper o corte, mas… todos os dias nos imaginei olhando para ela enquanto contaria da cor e do sonho iniciado com a sua chegada e do qual ainda muito faltava na sua partida. Quando o verde verteu-se em vermelho e de tudo restou-me só o pretume.

O grito ensaia rasgar o íntimo. Batidas na porta. Estanca. Desço as escadas. Chego ao térreo e sinto algo mover-se além do tornozelo. Luto para chegar à porta entre águas inundando tudo. Abro.

一 Você precisa sair daqui agora!

一 O quê?

一 Você precisa sair! Tem mais alguém aí dentro?

一 Não.

一 Venha comigo!

一 Minhas coisas…

一 Não há tempo!

Saio sem nada. A chuva cessou. Está clareando. Disseram-me pensar que a casa estava vazia. Perguntaram-me como não ouvi as vozes. Diziam entender o meu choque. Perguntaram-me se tenho familiares a quem recorrer. Consolaram-me, havia perdido tudo e disseram: O importante é a vida. Agora, numa calçada, vejo de fora a casa desmoronar pela encosta junto a toneladas de lama e passado enquanto o sol nasce no limite do céu.

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Ramana Bispo Mendes
Revista Mormaço

Escrevo com certeza sobre coisas que nem sei direito e pessoas parecem gostar disso