A CRIANÇA PRETA COMO PILAR DA COMUNIDADE

Chicoerik
RevistaNgunzo
Published in
3 min readOct 1, 2021

Certa vez chegou a seca e com a seca chegou a sede.
Não havia água, todos estavam desesperados e a morte já rondava o povoado.
Todos estavam à procura de água e todos fracassavam, homens e mulheres.
Os irmãos Ibejis brincavam no quintal, corno sempre.
Faziam buracos no chão.
Mas não era exatamente a brincadeira o que os entretinha.
Eles escavavam a terra à procura de água.
No final dessa busca angustiada, as crianças gêmeas alcançaram urna fonte subterrânea e com sua água cristalina abasteceram potes, vasos e quartinhas.
Ofereceram então a todo o povoado o líquido precioso, matando a sede de seu povo e afastando a morte.

Este itan sobre os ibejis, divindade gêmea da vida, protetor dos gêmeos na mitologia iorubá, retrata muito bem aquilo que viemos falar aqui hoje; a importância das crianças na comunidade. Não viemos falar de infância, pois infância significa “aquele sem voz” e é uma compreensão totalmente branca sobre esse estado de espírito e força que todos nós passamos e guardamos. Inclusive, infância é uma palavra que os europeus utilizaram para falar sobre os povos africanos, argumentando que somos infantis, ou seja, sem voz e prematuros na história da civilização, sendo que sabemos que fomos nós que inauguramos a civilização.

As crianças dentro da comunidade negra representam o início do ciclo sem fim, pois funcionamos a partir do movimento início-meio-início, sempre voltamos para o ponto de início e a criança é a força motora desse início. Por isso começar com esse itan, demonstrando que a brincadeira é uma ciência, um objetivo, não é em vão… “quando uma criança brinca ela tá fazendo alguma coisa”… Essa é uma frase que ouvimos muito nos terreiros de umbanda e candomblé. Uma brincadeira de criança nunca é só uma brincadeira, por isso “nunca devemos excluir as crianças dos rituais. A presença das crianças gera os rituais mais simples e vibrantes. Quando estão presentes , o quer que se faça de errado tornar-se certo. Por alguma razão, elas são por sua própria natureza, ritualística” (SOMÉ, Sobonfu). As crianças são a força fundamental da comunidade, sem elas, nada se movimenta, nada se torna… Enquanto continuarmos desvalorizando a potência ancestral das crianças, sua colaboração, criatividade e vida, continuaremos em uma seca, como no itan.

Infelizmente, por conta de nossas mentes colonizadas, ainda reproduzirmos essa prática branca de acharmos que as nossas crianças não têm nada para nos ensinar, que são sem voz e ingênuas. Desta forma, assim como falamos de respeitar os mais velhos devemos também respeitar os mais novos. As crianças pretas precisam ser cuidadas pela comunidade e acolhidas… sem elas não temos comunidade e nem continuidade, e por essa razão elas são o pilar de nossa espiritualidade.

Kiriku e a feiticeira é um filme que retrata muito bem o que acontece quando valorizamos nossas crianças, pois ninguém conseguiu resolver as coisas com a feiticeira e fazer com que a fartura voltasse pra aldeia senão Kiriku, foi Kiriku com suas brincadeiras e seu corpo pequeno que venceu diversos feitiços da feiticeira, inclusive o que a manteve prisoneira da mágoa… Quem não assistiu Kiriku deve assistir, é um ensinamento sobre a magia e o poder das crianças negras dentro da comunidade.

CENA DO FILME KIRIKU E A FEITICEIRA

Assim como os Ibejis, foi Kiriku que trouxe a fartura de volta a comunidade… Tratar nossas crianças dessa forma é demonstrar pra elas mesmas seu poder, sua ancestralidade e se hoje elas não descobriram isso é tudo culpa nossa, pois é nossa responsabilidade caminhar junto, se estão no caminho contrário da comunidade é porque a comunidade está falhando em seu papel… Não é lei 10.639 ou professor branco, somos nós que devemos assumir essa responsabilidade, pois sem elas nossa comunidade despenca e nunca enxergaremos problemas que só elas mostram.

--

--

Chicoerik
RevistaNgunzo

Panafricanista, filósofo e integrante da revista Ngunzo do grupo Teatro Na Porta de Casa.