A espiritualidade Afrikana é uma arma contra o racismo

Chicoerik
RevistaNgunzo
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4 min readJul 21, 2021

As espiritualidades africanas são repletas de ciências e práticas que muitas vezes estão no dia a dia das pessoas pretas, mas que também guardam seus mistérios, mistérios esses que se restringem apenas aqueles que buscam de forma dedicada. Existe um detalhe dentro de nossas práticas espirituais que às vezes esquecemos, muitas vezes por causa do sono que o colono branco nos colocou ou simplesmente por ignorância mesmo. Esse detalhe está presente desde Kemet aos dias atuais, isto é, a preparação para luta. Quando digo luta, falo de enfrentamento direto a toda ameaça, nada de conversa ou negociações que não nos favoreçam. A espiritualidade é uma preparação corporal e espiritual.

Há vários exemplos para o que estou falando. Temos o exemplo da Revolução do Haiti, na qual foi feita a cerimônia mais importante historicamente do vodu haitiano, a cerimônia Bois Caïman (ou “Bwa Kayiman”) de agosto de 1791, que começou a Revolução Haitiana. Nessa cerimônia, um porco preto foi ofertado a Ezili Dantor (um Ioá muito importante do vodu haitiano e está associado ao porco preto) e todas as pessoas presentes comprometeram-se com a luta pela liberdade. Tal cerimônia resultou finalmente na libertação dos povos do Haiti da dominação colonial francesa em 1804 e o estabelecimento da primeira república de povos negros na história do mundo. Tudo a partir da espiritualidade.

A revolução do Haiti não é o exemplo único para o que estou falando. Outro exemplo é o próprio Kilumbu de Palmares, sua organização político-social e toda sua resistência estava associada a espiritualidade bantu. Sua estrutura econômica era regida pelo Ujamaa (economia e cooperativa): interdependência financeira, recursos compartilhados. Assim como outros princípios espirituais. O próprio título dado ao rei, Nzumbi, tem significado ligado a espiritualidade bantu. O Kilumbu de palmares resistiu por quase 100 anos as invasões e investidas dos colonizadores e continua até hoje em nossas memórias como um símbolo de luta. No entanto, é uma pena que continua apenas em nossa memória e não em nossas práticas, pois o que necessitamos mais do que rememorar nossos grandes feitos, é colocar em prática o que já foi ensinado.

O que podemos aprender com esses dois exemplos é que não dá para combater genocídio, etnocídio ou seja o que for que venha contra nós com outros nomes, mas que é tudo racismo, sem espiritualidade, sem está em dia com nossa espiritualidade. Qual responsabilidade temos com ela? Como estamos tratando-a? É muito lindo falar sobre combater o racismo, não sei o que, salve os orixás (que é só o que a maioria conhece né) sem está em dia com que estamos nos comprometendo, sem ao mínimo alimentar nada. Antes de os pretos iniciarem a revolução no Haiti, o que fizeram? Alimentaram, deram algo em troca para poder receber o queriam. O que será que Ganga Zumba (o primeiro rei de Palmares que se tem registro) fez para conseguir elaborar e ajudar tantas fugas das fazendas? Com certeza muita da macumba. Muita mandinga, muito feitiço foi feito para que estejamos vivos ainda hoje. E o que estamos fazendo hoje? Chorando para que o branco nos aceite em suas universidades, nos seus espaços, nos seus restaurantes. Chorando para que ele nos reconheça quando deveríamos estar em nossos espaços, construindo estratégias de como vivermos melhor do que nesse inferno.

A espiritualidade está ai nos cobrando pela nossa displicência e irresponsabilidade. Quanto mais a gente se distancia daquilo que fez com que continuássemos vivos até hoje, cada vez mais iremos padecer. Então vamos se tocar e cuidar.

Bom Senhor, que fez nascer o sol que brilha sobre nós, que se eleva do mar, que faz rugir o furação e governa os trovões:

O Senhor está oculto nos céus e ali nos vigia. O senhor vê o que os brancos fizeram. Seu deus comanda os crimes, o nosso nos dá bênçãos. O bom Deus ordenou vingança. Ele dará força aos nossos braços e coragem aos nossos corações. Ele nos sustentará. Derrube a imagem do deus dos brancos, porque ele faz as lágrimas fluírem dos nossos olhos. Ouça a Liberdade que fala agora em todos os seus corações.

- Oração de Duty Bookman feita na noite de cerimônia Bwa Kayiman.

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Chicoerik
RevistaNgunzo

Panafricanista, filósofo e integrante da revista Ngunzo do grupo Teatro Na Porta de Casa.