Arte periférica ou arte negra?

Lucas Vidal
RevistaNgunzo
Published in
4 min readApr 29, 2021

Muitas são as inquietações quando pensamos na relação entre arte e povo preto. As pesquisas históricas, facilmente encontradas no google, dão conta de muitas expressões da arte hoje que foram criadas ou idealizadas por pessoas pretas, como o teatro grego apropriado dos rituais africanos ou da criação do rock, blues, jazz, samba, entre outras formas de se fazer arte e expressar arte.

Logo, depois de tantas pesquisas e documentos provando a originalidade dos povos africanos sobre as linguagens da arte como teatro, dança, música, literatura e circo, é difícil não perceber que África é o centro cultural do povo preto. Partindo disso, temos hoje um boom de coletivos pretos, grupos de danças pretos, bandas de rock pretas que surgem nas periferias das principais capitais do Brasil.

Nossa reflexão aqui é pensar o porque sempre rotular uma instituição africana, a exemplo do reggae, de reggae de favela? ou forró de favela? ou rock de favela? Se sabemos que todas essas expressões são de raiz africana/diaspórica, qual o sentido dessa demarcação de classe? Vamos por partes…

A historiadora Beatriz Nascimento vai trazer uma leitura de quilombo que é muito importante para pensar o povo preto na cidade. Ela afirma que grande parte das favelas do Rio de Janeiro são remanescentes de quilombos, fazendo com que instituições da cultura negra como o maracatu, reggae, samba e outros, aconteçam de maneira mais forte na periferia do centro das cidades. De fato, quem mora ou morou em periferia sabe que essas áreas são centros culturais importantes que abrigam nossa forma de viver e produzir cultura.

Em Fortaleza são inúmeros os brinquedos presentes nos bairros periféricos como o Boi Bumbá, Maracatu, Coco de roda, Reisado, grupos de samba, bandas de rock, grupos de reggae, grupos de hip hop. Entretanto, é importante perceber que esses brinquedos se relacionam não apenas com os territórios que estão inseridos, mas com culturas e ritos que têm origem na África. A exemplo, o maracatu não é chamado de maracatu de favela, ele é apenas chamado como maracatu, apesar de a maior parte dos maracatus de Fortaleza estarem inseridos em bairros de periferia.

Dito isso, porque com o reggae, o rock, o samba, o forró que são instituições de origem negra necessitam de um recorte de classe? Esse pensamento é desdobramento de algo muito debatido recentemente: a apropriação cultural. Apesar de estarmos em território de maioria negra, com um nível de precarização de vida fruto do racismo, as periferias também são compartilhadas, em sua minoria, por populações brancas. Os brancos periféricos sentem a necessidade de compartilhar a cultura preta que é rica e diversa. Como afirma o próprio Abdias do Nascimento: o branco sofre de uma adolescência tardia, se atrai pelo perigoso, pelo proibido, ou seja, aquilo que aprenderam ser ruim ou demoníaco.

Essa apropriação influencia dois fluxos: a aproximação dos brancos com a cultura diaspórica e o distanciamento dos negros dessa cultura, promovido pelo racismo seja religioso ou cultural. A partir disso, o reggae não pode ser apenas reggae, ele precisa ser o reggae da favela porque absorve todos que ali estão, negros e brancos. O forró não pode ser forró, tem que ser forró de favela. Na sociedade colonial, nomenclaturas são importantes, pois rotulam, enquadram e definem um conteúdo. Nesse sentido, essa influência de um pensamento tomando como centro a classe é fruto de um processo de apropriação cultural e pensamento classista sobre a nossa cultura.

Isso reflete na arte, através de grupos de teatro negro “periférico”, dança negra “periférica”, literatura negra “marginal”. Outras formas que isso é percebido são através das organizações políticas como que descentram a questão do negro e passam a focar em uma visão de classe…Todas elas tentativas de aproximar a experiência do branco pobre com a do negro. Para além de uma questão de forma, há aí uma questão de conteúdo. A partir dai os brancos também podem se tornar referências dessas formas de fazer arte, como um branco dirigindo um espetáculo sobre negros, um branco ser dj ou cantor de reggae e outras variações dessa forma de apropriação que são danosas para a relação da população negra com sua cultura.

Isso exposto, não é de se espantar a quantidade de igrejas nas periferias e a grande maioria dos fiéis ser gente preta, do nosso povo. Enquanto temos bailes de reggae de favela produzidos por pessoas brancas. Essa troca, essa apropriação é fruto dessa confusão entre classe e raça feita por partidos de esquerda que agenciam diversos movimentos periféricos. Mais uma vez, na sociedade colonial a nomenclatura é um local de dominação. Mudando nomes, mudamos conteúdo e isso nos diz muito…

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