Calibre seu negrômetro

Coletivongunzo
RevistaNgunzo
Published in
3 min readJul 8, 2023

Por Lucas Limeira

Lembro de quando eu era criança ouvir meu tio dizer a seguinte frase “ou é nêgo, ou é branco, pra mim não tem essas coisas de moreno não”. Também durante a infância ouvia muitas pessoas afirmarem que “negro mesmo é aqueles africanos que é tão nego que é azul, você é moreninho”. “Pardo é papel” e “existem diversos tons de negro, mas são todos negros” foi o que aprendi mais tarde:

“A palavra negro significa ser sem alma, o certo é preto”

“Preto é quem é retinto, os clarinhos são afrobeges”

“Bege só faz begisse!”

“Mas você é pardo negro, pardo branco ou pardo indígena?”

“Como esse fulano não passou na banca de heteroidentificação? Ele é visivelmente não-branco”

É tanta classificação que às vezes eu prefiro voltar ao que meu tio disse lá na minha infância. Claro que a reflexão hoje é mais complexa e entendemos que não é só o africano e o europeu que habitam esse território. É isso também que faz entendermos a complexidade do que é ser negro no Ceará, algo que já discutimos por aqui.

Mas voltando à classificação, como você se autodeclara? Seu negrômetro tá calibrado? Aqui em Fortaleza por exemplo alguns negrômetros acusam ser retinto quem é um pouco mais escuro. Alguns negrômetros também tem uma classificação genérica de “não-branco” pra aqueles brancos um pouco mais escuros. Apontando o negrômetro pra qualquer pessoa alva, aqui também acusa pardo. Mas o mais incomum de se encontrar por aqui é um branco. Pouco se vê, os negrômetros não acusam, é muito raro.

Esse é um dos desserviços de algumas classificações raciais. Elas se tornam um malabarismo pra branco se isentar da sua responsabilidade. Ele tem várias opções do que ser, e ele quer ser tudo, menos branco. Nessa brincadeirinha até o “periférico” vira identidade pra se isentar.

Trazendo a responsa pra nós, o que percebo nessa cidade é pessoas claras validando a negritude de pessoas cada vez mais claras para assim validar sua própria negritude questionável. Porque se fulana que é mais clara do que eu é negra então eu também sou. E mais uma vez caímos na confusão racial que é ser negro nessa cidade.

Por outro lado, refletindo de dentro da comunidade, percebo cada vez mais a importância de se classificar os tons de negro. Entendendo que o claro, bege, ou como queira chamar, tem um local de acesso completamente diferente do escuro, retinto. Nesse sentido vejo a importância de se classificar o ser negro.

Essa é uma reflexão que ainda tem muitos caminhos a tomar, mas acredito que uma das estratégias que precisamos ter é definir os critérios raciais do que é ser negro. Calibrar nosso negromêtro. Enquanto comunidade, o coletivo ngunzo tem seu olhar sobre o ser negro no Ceará, e pra mim, pessoalmente, vejo que o negrômetro do meu tio é um dos mais calibrados nessa Fortaleza.

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