Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço?

Lucas Limeira
RevistaNgunzo
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3 min readMay 14, 2021

Quando a gente é criança uma das nossas maiores referências para aprendizado é observar nossos pais na forma como eles agem e interagem com o mundo. Nosso aprendizado é muito mais por exemplo do que por qualquer outra coisa, né? Lembro de na minha infância reproduzir várias coisas que via minha mãe fazendo e isso às vezes levantava risos da família e outras vezes me custava uns belos tapas. Quando eu questionava o porquê de ter apanhado se ela fazia a mesma coisa vinha aquela frase “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”

Mas faz sentido cobrar de alguém aquilo que você não pratica? Mesmo que seja uma criança, ela tá ali vendo a contradição do corpo e do discurso. Por que eu não posso fazer isso ou aquilo se eles fazem? Por que eu não posso ser como minha mãe ou meu pai? É aquela coisa de se espelhar no mais velho, de ter ele como exemplo, de querer ser como ele, porém depende né.

Das concessões que nossos mais velhos tiveram que fazer para sobreviver nesse país, tenho certeza de que muita coisa eles não se orgulham e não querem passar para seus filhos, outros hábitos estão tão entranhados nesse modo branco de viver que nem sequer passa pela autocrítica, da mesma forma que todos nós, quantas concessões não fizemos para viver da forma mais branca possível nesse país? Nossa educação, nossa alimentação, nossas referências, a música que ouvimos, os filmes que assistimos, a roupa que usamos, o nosso modo de agir, de falar. A questão é, pensando tudo isso, em que momento a gente reflete que nosso corpo é referência para outros?

Foto por Oshomah Abubakar no Unsplash

A nossa ancestralidade tá aí pra nos mostrar que somos um povo que aprende pelo exemplo, pela observação. Os itans, por exemplo, são os contos que nos exemplificam como ser e como não ser, na capoeira aprendemos sentando e observando antes de tentar, no candomblé sentamos e ouvimos antes de fazer, nas brincadeiras populares também. Nossa cultura não separa o dizer do fazer, é faça o que eu digo e faça o que eu faço. E aprenda observando pra fazer direito.

Não tô dizendo aqui também que a gente tem que reproduzir o erro de algum mais velho porque viu ele fazendo. Temos que ter o discernimento de pensar na comunidade e só repassar como exemplo aquilo que nos edifica. O que queremos para o nosso povo? Isso é pra além de carta de repúdio na internet, discussões acaloradas na universidade e passeatas depois de um acontecimento brutal. Que homens e mulheres queremos ser no nosso dia a dia? Que exemplos queremos passar?

É um caminho longo pois quanto mais procuramos o exemplo de nossos ancestrais mais percebemos que estamos totalmente adoecidos, mas acredito que o primeiro passo é parar de ser exemplo negativo e aí trabalhar para ser o que queremos para o nosso povo. E aí? Tá disposto?

Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos.

Exu prestava muita atenção na modelagem

e aprendeu como Oxalá fabricava

as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens,

as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres.

Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá.

Exu não perguntava.

Exu observava.

Exu prestava atenção.

Exu aprendeu tudo.

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Lucas Limeira
RevistaNgunzo

Ator, membro fundador do grupo Teatro na Porta de Casa e da Revista Ngunzo