O masculino e o feminino na comunidade

Lucas Limeira
RevistaNgunzo
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4 min readJun 11, 2021

Nossa espiritualidade nos ensina que dentro de cada um de nós se encontram energias masculinas e femininas que compõem o que somos. São essas energias que moldam nossa personalidade e nos ensinam como ser. É preciso aceitá-las, alimentá-las e equilibrá-las para que vivamos em harmonia conosco e nossa espiritualidade como relata Sobonfu Somé a partir da experiência de seu povo Dagara, da África Ocidental.

“Ser mulher não significa que a pessoa não tem nada a ver com a energia masculina. Da mesma forma, ser homem não quer dizer que a pessoa não tem nada a ver com o feminino. Vaginas e pênis não são as únicas coisas que definem nossa natureza sexual. Nossa vida é influenciada pela presença, dentro de nós, das energias masculina e feminina. É importante que essas energias estejam em harmonia dentro de nós.”

Pensando um nível um pouco acima, a comunidade também dispõe de energias masculinas e femininas, homens e mulheres, que precisam trabalhar para que a comunidade funcione. Existem funções a serem exercidas e algumas dessas funções necessitam que essa energia, masculina ou feminina, seja posta. O candomblé é um dos exemplos de instituição preta em que determinadas atividades competem aos homens, outras às mulheres e outras a todos.

Isso é visto de forma natural, assim como algumas atividades competem aos mais velhos, outras aos mais novos e algumas só a determinados cargos. As atividades e o candomblé trabalham com essas energias e existem fundamentos por trás disso. Existe um equilíbrio.

Os itans nos ensinam a pensar e equilibrar essa energia dentro de nós e da comunidade, mostrando que não é uma mais importante que a outra ou que uma não tem a mesma capacidade que a outra, como o machismo e o feminismo, ambas ideologias brancas, nos põe, mas que para um bom funcionamento essas energias precisam estar equilibradas mesmo que a base de algum desequilíbrio anterior.

“Mulheres e homens têm seus próprios mistérios, e nenhum dos dois jamais entenderá o outro completamente. O modelo da aldeia existe não para estimular o sexismo, mas para criar um ambiente no qual os sexos apreciam e respeitam o outro.”

Deixo então aqui dois itans para pensarmos. Ogum e Oxum, masculino e feminino nos mostrando a importância do equilíbrio para a comunidade.

Ogum conquista para os homens o poder das mulheres

No começo do mundo,

eram as mulheres que mandavam na terra

e eram elas que dominavam os homens.

A mulher manejava o homem com dedo mindinho.

As mulheres tinham o poder e o segredo.

Iansã tinha inventado o mistério das sociedade dos egunguns,

A sociedade de culto aos antepassados,

e os homens estavam sempre submissos ao poder feminino.

Quando as mulheres queriam humilhar seus maridos,

elas se reuniam com Iansã debaixo de uma árvore.

Iansã tinha um macaco ensinado.

Ela o fazia aterrorizar os homens.

Sim, mandava que ele fizesse coisas para assustar os maridos.

Quando viam ali na árvore

o macaco fazendo as coisas a mando de Iansã,

os homens se apavoravam

e se submetiam ao poder feminino.

Finalmente, um dia

os homens resolveram acabar com aquela humilhação

de estarem sempre submissos ao poder se suas mulheres.

Os homens consultaram Orunmilá

e ele mandou fazer um ebó.

O sacrifício era de galos, uma roupa, uma espada, um chapéu.

Ogum era quem deveria levar o sacrifício,

a ser oferecido sob a árvore das mulheres.

Ogum foi bem cedo à árvore,

antes da chegada das mulheres.

Ali ofereceu os galos,

vestiu a roupa e o chapéu e empunhou a espada.

Quando as mulheres e viram aquele homem forte

vestido como um poderoso e armado até os dentes,

exibindo as quatro ventos seu porte de guerreiro,

elas saíram a correr e a correr num pânico incontrolável.

A vista do homem assumindo o poder era terrificante.

As mulheres não suportaram tal visão.

Iansã foi a primeira a fugir de espanto.

Uma das mulheres, de medo, correu tanto

que desapareceu da face da terra para sempre.

Desde este dia o poder pertence aos homens.

E os homens expulsaram as mulheres das sociedades secretas.

Porque a posse do segredo agora é dos homens.

Iansã, no entanto, ainda é a rainha do culto dos egunguns.

Oxum faz as mulheres estéreis em represália aos homens

Logo que o mundo foi criado,

todos os orixás vieram para a Terra

e começaram a tomar decisões e dividir encargos entre eles,

em conciliábulos nos quais somente os homens podiam participar.

Oxum não se conformava com essa situação.

Ressentida pela exclusão, ela vingou-se dos orixás masculinos.

Condenou todas as mulheres à esterilidade,

de sorte que qualquer iniciativa masculina

no sentido da fertilidade era fadada ao fracasso.

Por isso, os homens foram consultar Olodumare.

Estavam muito alarmados e não sabiam o que fazer

sem filhos para criar nem herdeiros para quem deixar suas

sem novos braços para criar novas riquezas e fazer as guerras

e sem descendentes para não deixar morrer suas memórias.

Olodumare soube, então, que Oxum fora excluída das reuniões.

Ele aconselhou os orixás a convidá-la, e às outras mulheres,

pois sem Oxum e seu poder sobre a fecundidade

nada poderia ir adiante.

Os orixás seguiram os sábios conselhos de Olodumare

e assim suas iniciativas voltaram a ter sucesso.

As mulheres tornaram a gerar filhos

e a vida na Terra prosperou.

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Lucas Limeira
RevistaNgunzo

Ator, membro fundador do grupo Teatro na Porta de Casa e da Revista Ngunzo