O QUE É SER PRETO NA TERRA DA LUZ?

Coletivongunzo
RevistaNgunzo
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5 min readAug 17, 2023

Por Eric Santos

A historiografia oficial conta que o estado do Ceará recebe a alcunha de Terra da Luz, pois se destacou ao abolir a escravidão quatro anos antes da abolição nacional. Em 25 de Março de 1884 a, ainda, província cearense oficializava a ‘libertação’ de cerca de 30 mil cativos. Em âmbito nacional, movimento similar só aconteceria em 13 de maio de 1888. Estas datas são íntimas àqueles que habitam a cidade de Fortaleza. A primeira é um feriado estadual e a segunda nomeia uma importante avenida na capital cearense.

A historiografia oficial é uma das maneiras de contar a história. Realmente, apresenta fatos históricos e suas datas. Mas, para uma interpretação justa (não me refiro ao conceito branco da justiça cega, mas ao conceito de jusitiça de xangô — um machado que corta dos dois lados) deve ser adicionado à história o devido protagonismo daqueles que lutaram para que a história se moldasse dessa forma. Nesse sentido, destacar o protagonismo negro no processo de abolição da provincia é essencial. Para isso, conhecer a revolta dos Jangadeiros é essencial.

Porém, é necessário, ainda adicionar mais uma camada a essa interpretação: a falsa ideia de antecipação jurídica do status de “escravos” para “libertos” têm duas implicações. A primeira, parte da premissa de que a abolição foi antecipada. Ledo engano. Para o povo preto, a abolição já tardava muito. A exploração já havia acontecido por anos a fio. A segunda, é a falta de reparação histórica. Assim como no movimento nacional de ‘libertação’, o movimento cearense alterou o status jurídico dos escravizados para ‘libertos’, sem nenhuma preocupação de reparação histórica com os povos que foram sequestrados de suas terras e famílias, tiveram sua mão de obra covardemente exploradas, foram violentados em suas religiões e línguas; e depois jogados à própria sorte nestas terras.

Djonga nos lembra que “a dica do dia é: dai a César o que é de César, mas devolvam o que é nosso”. Por isso, ainda no que se refere à justiça histórica, precisamos relembrar que a alcunha de Terra da Luz foi um título dado à província pelo abolicionista José do Patrocínio, ao reconhecer que a articulação dos povos pretos nas terras de cá surtiram efeitos na estrutura política e social da província e que o clima poderia inspirar a nação. A luta articulada dos povos pretos foi cenário para o despontar de dias menos sofridos. Aqui vale o ditado: antes tarde do que mais tarde ainda. Para a população negra o efeito da ‘libertação’ permitia outras formas de se articular, ainda que dificultada por terem sido deixados ao léu.

Presentemente, a usurpação da alcunha é sintoma de uma historiografia esbranquiçada que puxa para si os holofotes dessa luzinha que se acendeu no passado. Em outras palavras, a branquitude, que detém o poder de contar a história, se pinta de iluminada, progressista, a frente do seu tempo e etc. para ofuscar os diversos anos de exploração e o abismo social que o regime escravocrata deixava. Sabe aquela pessoa branca que é legal e acha que assim está fora da estrutura racista, mas não abre mão dos privilégios? Então, esse é o modus operandi da branquitude. Atualmente, a branquitude usufrui da riqueza material e simbólica desse histórico, mas com a pegada bacaninha de quem vive numa terra iluminada. Aproveitam-se do histórico da data magna, como ficou reconhecido o 25 de Março, para dizer que não existem negros no Ceará. Obviamente, uma contradição em termos, típica da burrice branca. Se se reconhece que houve uma libertação ‘antecipada’ dos negros, é porque existem negros. Como ousam negar uma negritude que protagonizou a primeira brecha legal para a libertação nacional? Xênia França canta:

“De vez em quando
Um abre a boca
Sem ser oriundo
Para tomar pra si
O estandarte
Da beleza, a luta e o dom
Com um papo
Tão infundo”

Imediatamente e a longa data, precisamos evidenciar que os efeitos danosos para a população negra é inegável, tanto objetivamente quanto subjetivamente. No Brasil, estudos comprovam que a população negra tem desvantagem econômica frente à população branca. Isso significa dizer que o abismo social deixado pelo regime branco de escravidão contra os povos pretos impedem a população negra, ainda hoje, de alcançar oportunidades de estudo e emprego que permitisse alterar a dinâmica social. Ou seja, aqueles que detêm as riquezas, os melhores cargos nas empresas, a representação política, o aparato partidário e sindical, os títulos de intelectualidade, os meios de produção de comunicação de massa (tv e rádio) e destaque na comunicação nas redes sociais, são brancos.

No Ceará, não é diferente. Os quatro anos que distanciam a abolição cearense da abolição nacional se dissolveu no abismo de injustiças ao qual a população negra cearense foi relegada. Ressalto que quando falo sobre objetividade, me refiro ao material e ao financeiro. Afinal de contas, ninguém vai pensar em representatividade nas novelas com a barriga vazia. Ainda mais, não se pode construir um projeto político contra-colonial se a população que visa ocupar esse espaço for materialmente exterminada pelo braço armado do estado, a polícia.

Xênia ainda nos lembra que “não fecha a conta, a cota é pouca e o corte é fundo”. Assim sendo, irei ainda falar de aspectos subjetivos de ser preto na terra da luz. Para isso, irei retomar um evento que seria cômico, se não fosse trágico. Em meados do ano de 2020 um estudo conduzido por um professor da Universidade Federal do Ceará, indicou uma pseudo origem viking do povo cearense. Isso é sintomático. As mídias locais repercutiram bastante o caso. E, isso também é sintomático.

Quanto ao estudo, ele é bastante questionável, no que se refere ao método e a sua forma de publicação. Por ser um estudo com observação no código genético, o professor responsável utiliza o discurso de uma pseudo objetividade das ciências biológicas para se isentar, além de não fundamentar outras etapas da pesquisa científica. A escolha dos voluntários não foi aleatória nem seguiu critério algum, além da escolha da empresa responsável pela análise genética. Num estado de 9 milhões de habitantes, foram analisadas apenas 160 amostras. Alguns geneticistas questionam, ainda, o trabalho ter sido publicado em livro, sem revisão de pares (outros profissionais do ramo). Ainda é questionável a própria escolha de buscar material genético dos vikings de uma população que teve o projeto político de branqueamento como política de estado. Enfim, saindo das bizarrices desse pseudo estudo quero destacar suas reverberações.

A mídia local publica isso como um grande feito científico. Espalhar a notícia de um estudo duvidoso implica na aceitação de parte dessa notícia pelo grande público. Isso ecoa na identidade das pessoas destas terras. A negação da população negra e indígena que muitas vezes é aceita pelo senso comum, toma forma de discurso científico e midiático. Ressalto que a ciência e a mídia servem à branquitude e são herdeiras de um grande prestígio na sociedade atualmente. A negação reverberada por essas instituições são sintomas da síndrome de vira-lata que a branquitude cearense força para criar sua ilusão e manter seus privilégios, porque a negação da identidade de uma população é uma estratégia que tem servido para a manutenção do privilégio branco.

A outra reverberação foi nas mídias digitais e redes sociais. Quando a população tem acesso ao absurdo que são as notícias baseadas nesse estudo os deboche e humor cearense é uma estratégia de resistência frente à tentativa de apagamento oriunda do vira-latismo da branquitude cearense. Essas estratégias, no entanto, precisam ir além das redes sociais e criar uma articulação de práticas quilombistas.

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