Quem conhece o teatro?

Gabe Antunes
RevistaNgunzo
Published in
3 min readApr 30, 2021

Quando começamos a pensar em teatro, temos uma visão bem eurocentrada. Um palco, um público, atores e atrizes, cenários, figurinos, etc. Alguns até chamam uma determinada forma de teatro de “palco italiano”. Quando aprendemos a origem do teatro, em qualquer pesquisa rápida no google, vemos que o “teatro grego” é o berço das artes cênicas. Querem que acreditemos que foi construído e compartilhado por pessoas brancas, mas esquecem que ele foi/é direcionado para pessoas brancas.

Se vamos pegar essa história branca pela suposta “origem”, não vemos uma pessoa preta sequer sendo retratada apesar de a arte teatral ser totalmente dominada por companhias negras durante os séculos XVII e XVIII. Porém, durante o século XX a representação do negro ficou a cargo de pessoas brancas, que se pintavam e atuavam de forma totalmente equivocada e estereotipada. Quando os artistas negros estavam em atuações, não era em grupo (a não ser que seja um grupo de escravos), eram pequenas aparições em papéis secundários de pequena importância.

Tudo uma grande apropriação cultural, sendo que apropriação cultural é só mais termo utilizado pelos antropólogos para não nomear o que fato aconteceu e acontece: um roubo cultural. Eu não falo da apropriação que conhecemos como brancos usando turbantes e tranças, vestimentas com estampas étnicas e por aí vai. Estou falando de roubo de uma identidade, roubo e apropriação de uma arte.

Sim, o teatro tem origem negra, assim como diversas outras artes que conhecemos. Teatro é de origem africana, kemética (egípcio) para ser mais exato. Nada mais significativo para demonstrar isso do que os testemunhos arqueológicos mais antigos referentes ao teatro egípcio encontrado em um grupo de estelas funerárias em Abidos, datadas do Médio Império (2040 a.C.), que nos contam como os reis da XII Dinastia (1991–1782 a.C.), rompendo com a tradição, fizeram executar, em cerimônias públicas, os segredos do drama sagrado de Ausar (Osíris) Khentamentiu sua morte, ressurreição e triunfo — o que os cristãos fazem hoje com nome de Via Sacra.

A representação de vida de Ausar era uma das grandezas dramatúrgicas no Egito, assim como os gregos também faziam em suas dramaturgias, algo que roubaram dos Keméticos, além da filosofia, ciência, literatura, etc. Nós já fazíamos teatro muito antes dos gregos. O que eles fizeram foi roubar o que já fazíamos e colocaram nos termos deles.

Hoje, muito tempo depois da origem, ainda lutamos para reaver o que é nosso. Muito foi recuperado, mas ainda sofremos de uma grande tomada das nossas histórias e dos nossos costumes. Dentro da academia, por exemplo, ainda é dito que “teatro do jeito que conhecemos tem origem na Grécia”. O que é o jeito que conhecemos teatro, afinal? É muito ingênuo conhecer o teatro e não perceber que a arte que foi popularizada mundialmente nasceu de um apagamento cultural.

Até hoje quando se fala sobre, inúmeros acadêmicos e entusiastas levantam questões para relativizar o racismo e o genocídio que se deu para tomada da nossa cultura. Só escutam e consomem a nossa arte quando tem a palavra “negro” logo após a palavra “teatro”. Foi o lugar que nos colocaram, não foi criado por nós, nossa criação é o teatro. É uma lógica muito simples. As vezes até nos categorizam como “teatro periférico”, lugar onde fomos alojados desde a escravidão até os dias presentes. Esses são os lugares que ocupamos nas artes cênicas até hoje.

Não me entenda mal, minha crítica não é ao teatro negro ou ao teatro periférico. É um manifesto para retomada das ideias. Por isso é necessário que nós resgatamos aquilo que já foi feito em termos de arte pelo povo preto e dê continuidade ao nosso legado e isso só será feito quando tivermos uma postura política para fazer isso, pois não adianta de nada um resgate desse sem o objetivo de libertamos nosso povo e construirmos de forma autônoma nossas sociedades. Se não fizermos arte com esse objetivo, continuaremos sendo pisoteados por eles e pedindo migalhas em seus espaços.

Marcus Garvey dá um ótimo conselho pra gente; Nenhuma raça no mundo é tão justa para dar aos outros, mediante pedido, um acordo justo nas coisas econômica, política e social. Não devemos mais pedir nada, mas fazer o nosso teatro, assim como iniciou Abdias do Nascimento com o TEN (Teatro Experimental do Negro); Benjamin de Oliveira com o palhaço Ben. É busca pela justiça cultural. É teatro, teatro negro, teatro panafricanista.

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