Um corpo para vida

Lucas Limeira
RevistaNgunzo
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4 min readApr 16, 2021

Tô pensando aqui como esse processo de sentar a bunda na cadeira e escrever um texto é complicado pra mim. Parece que todas as palavras que eu tinha pra dizer simplesmente somem e eu fico um tempão olhando pra tela procurando o que dizer e como dizer. É difícil, mas como quase tudo na vida, pode ser exercitado.

Na minha cabeça, meu processo com a escrita é muito parecido com o meu processo de cuidado com o corpo. É complicado, mas precisa cada vez mais ser exercitado. A escrita é um dos meios que temos para repassar o conhecimento que eu e meu grupo estamos adquirindo, é necessário pois uma das metas do Teatro na Porta de Casa é ser uma escola de arte e cultura preta, tendo cada um de nós que estamos aprendendo como os futuros professores dessa escola. Já o cuidado com o corpo é necessário porque é através dele que tudo acontece, é através dele que vamos fazer a escola acontecer, que vamos repassar o conhecimento, que vamos exercer nossa espiritualidade e nossa arte.

Outra parada é como esse processo de escrita foi ficando mais difícil pra mim. Quando mais novo eu escrevia cartinhas de dia das mães pra minha mãe, escrevia as redações que pediam na escola, já ganhei um par de ingressos pra um parque por causa de um texto que mandei pro jornal. Quando fui encontrando pessoas que falavam mais difícil fui retraindo esse meu lado, assim como fui retraindo esse corpo que corria com os meninos no meio da rua, jogava pega-pega, esconde-esconde, carimba, respondia e não fugia de briga na rua.

Às vezes me parece que toda essa retração começou quando eu entrei para o teatro. Nessas artes brancas tem um jeito certo de se comportar, de falar, de se mexer, por mais que pareça um lugar mais libertador. Menino, eu via meus professores de teatro como os mais cultos, eles escreviam diálogos difíceis e a forma de se mexer no palco era outra. Não sei se todo mundo sabe, mas o ator treina pra atuar, é como no esporte, preparação física, mental, alimentação, até a fala a gente treina. E se entendermos que a arte reflete uma cultura, eu estava ali treinando de um modo totalmente pensado para o corpo branco.

Não é novidade que o corpo branco e o negro são vistos de forma totalmente diferentes, então porque um treinamento pra o corpo do ator branco pode servir pro corpo do ator negro? Na verdade não serve. A gente nem precisaria desse tipo de treinamento sendo o povo que criou a capoeira, o samba, o maracatu, o coco de roda. Mas o que vemos é uma relação de roubo cultural que muitos grupos dirigidos por brancos utilizam para construir suas longas temporadas…

Imagem: Luhan Dias

E a gente fica como? E o nosso corpo? A gente vai se retraindo e esquecendo da nossa herança, desse corpo transatlântico que é herdeiro de uma ancestralidade viva em nós, que se expressa muito mais fora da academia do que dentro. Já parou pra perceber como o corpo do capoeira se prepara? Como se prepara o corpo dos brincantes de maracatu, coco, jongo, tambor de crioula, bumba-meu-boi e dos contadores de histórias? É uma riqueza tão grande de conhecimento e tecnologias que não precisaríamos seguir a velha preparação pautada em um corpo que é afetado por questões tão diferentes das nossas.

O Teatro na Porta de Casa prepara o corpo para ser uma continuidade da ancestralidade presente em todos esses brinquedos da cultura negra. Construímos teatro, mas nosso corpo é preparado para a nossa vida enquanto pessoas negras no mundo, ligados na importância da auto defesa, da espiritualidade e dos saberes herdados e repassados pela nossa ancestralidade.

Assim como o nosso corpo está sendo trabalhado, também estamos nos preparando pra compartilhar esses saberes, então escrever esse texto pra mim é um exercício de compromisso com as metas do meu grupo para com a nossa comunidade. É um primeiro passo para exercitar o papel de educador que irei exercer futuramente sob a benção dos ancestrais.

Mas esse é um papo que ainda estamos construindo como grupo, pensando o corpo a partir da nossa ancestralidade e de repente construir uma coisa nova como foi o Teatro Experimental do Negro de Abdias do Nascimento em sua época. Ainda tem muita conversa pra rolar e muito assunto pra desenvolver, e tamo por aqui pra compartilhar. Acompanha ai que ainda vamos trazer mais discussão massa nessa edição da revista.

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Lucas Limeira
RevistaNgunzo

Ator, membro fundador do grupo Teatro na Porta de Casa e da Revista Ngunzo