UM ESPELHO LIMPO, REFLETE-SE O QUE SE É

Coletivongunzo
RevistaNgunzo
Published in
4 min readAug 3, 2023

Por Hai

“Você não é negro, vc é marronzinho”

“Se o seu cabelo fosse fininho, lisinho você poderia deixá-lo crescer, mas ele é pixaim, é feio!”

“Seu nariz é afiladinho, não é que nem nariz de nego”

O limbo cultural da mestiçagem aliado ao colorismo, uma das facetas mais sutil do racismo, faz com que no Brasil, bem como no Ceará, nosso terreno de atuação, não nos reconhecemos como negro e a questão “Eu sou negro?” se torna uma pergunta que muitas vezes não é respondida por nós, mas por outros que nos rotulam dessa forma. Seria uma escolha? O tornar-se negro é um processo externo ou interno? Alisar ou ‘relaxar’ o cabelo? Parar de coçar o nariz pra ele não ficar mais largo, esperar o sol enfraquecer para usufruir da piscina, geralmente quando as demais crianças já estão cansadas. Mesmo nos privando de brincar com elas, o importante é se manter marronzinho, e não preto.

Logo cedo aprende-se que preto não é o escolhido. Nem para o amor romântico, nem para o afeto. Quanto mais você conseguir se distanciar do estereótipo preto, mais adequado você será. “Você é moreno da cor do pecado” com sorte você não vai passar pelo estigma de negro perigoso, o que todos ao verem passar, escodem seus celulares, tomam o lado oposto da calçada. Mas nem só de estigmas negativos na sociedade vive o negro, não é mesmo?! Na cama, o estigma de violento é muito bem vindo. O homem negro viril, violento e fudedor, essa vai para a lista de “elogios” de branco.

Desde cedo aprendi a me afastar de me entender enquanto uma pessoa negra, entendi que esse era o melhor caminho a se seguir para conseguir ser aceito. Com 8 anos eu estava em uma roda de amigos que estavam conversando sobre suas franjas e como é legal ser “emo”. Perguntei se poderia entrar naquele grupo, e me foi dito que não, afinal eu não podia deixá-lo crescer, e mesmo que deixasse, nunca teria franja como a deles. Apenas fui incapaz de segurar o choro como me senti ridículo por estar chorando, enquanto todos riam da minha demonstração de fragilidade. Não apenas aprendi a odiar tudo que é negro como aprendi também que ficar chateado em situações com esse tema é coisa de “frescurento”, eu tinha que parar de ser tão sensível e chorão.

Sensível eu nunca parei de ser, mas desaprendi a chorar por meus próprios motivos, afinal, entendi que isso era ridículo, não combina com meus estereótipos. Vir de contextos sociais em que as pessoas quase que em sua totalidade são brancos fez com que eu internalizasse que o que me restava era engolir o choro e tentar me “embranquecer” o máximo possível. Por vezes eu ainda conseguia ser “aceito” em ambientes sobre a justificativa de “ele é moreninho, feio é aqueles preto que de tão preto a pele é azul”. Apesar dessa “aceitação” não ser plena, ela por vezes me resguardou de não ser ainda mais destratado. Se entender enquanto uma pessoa negra é essencial para identificar e saber lidar com as agressões do racismo.

O sociólogo Oracy Nogueira afirma que: “ no Brasil, a intensidade do preconceito varia em proporção direta aos traços negroides”. Ser um negro de pele clara me confere um certo nível de passibilidade se me comparo com pessoas de pele mais escura, mas não me resguarda de sofrer as consequências do racismo, em todas as esferas sociais. Oracy Nogueira separa o preconceito racial a partir de duas vertentes. O preconceito racial de “Origem” e o de “marca”,sendo este último o que mais se adequa a situação do Brasil, onde o preconceito acontece a partir da aparência, dos traços, da fisionomia e até mesmo do sotaque dos indivíduos, mas sabemos que a discussão proposta por Oracy cai por terra quando Carlos Moore na sua obra “Racismo e Sociedade” argumenta muito bem que o racismo atua, principalmente, por meio do fenótipo, o racismo é uma marca brutal desda sua origem. Deste modo, ele sempre agirá através do fenotópico e suas leituras sociais, ou seja: mais claros e mais escurtos. Tal distinção opera uma richa, uma estratégia utilizada desde a época da escravização para colocar preto contra preto e alimentar um sentimento de ódio mútuo e um desejo cada vez mais latente de ser o superior, isto é, o branco. Por isso, devemos entender que a estratégia da pigmentocracia, ou colorismo, é uma estratégia de genocídio que funciona muito bem para o sistema racista, visto que construir um sistema que possibilita que negros se odeiem entre si, criando uma fratura dentro do sentimento de fraternidade da população negra, é uma tática que funciona há muito tempo, e muito bem. É bom nos atentarmos a isso.

Enfim, diante dessa reflexão pessoal e coletiva, noto que, observando a cena negra, especialmente no Ceará, a população negra não se entende enquanto uma população negra, e cada vez mais brancos estão se apropriando de uma negritude autodeclarada para tomar para si discursos e espaços que não os pertencem, simplesmente, porque ignoramos, muita vezes, a eficácia do Colorismo e sua nuances perigosas. Negar a existência da pigmentocracia ou dizer que “pra que isso, todo mundo é negro”, dá margem para uma embasada identidade racial, uma identidade confusa e ofuscante, como um espelho manchado, que não consegue enxergar direito quem é você mesmo, que reconhece qualquer um como parceiro/parceira, por isso, a necessidade de sabermos QUEM SOMOS. Sabermos quem somos e nosso lugar dentro da comunidade, é o ponto central de nossa caminhada.

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