“É jeito que o corpo dá”

Dessalín Òkòtó
revistaokoto
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9 min readJun 8, 2021

“Vamos jogar capoeira

Enquanto a polícia não vem

Mas se a polícia chegar, ô iaiá

Nós quebra a polícia também”

Ilustração: Lisimba Dafari

Sabe, galera, uma parada que a capoeira vai ensinando conforme a gente vai incorporando e pensando nela, é a capacidade de se antecipar ao jogo do outro e não entrar no jogo dele. E isso fala muito sobre autodefesa e saber andar em lugares arriscados para se safar de violências. O lance da capoeira é você sacar que você vai receber uma investida mais cedo ou mais tarde. Isso é dado. O papo é você se antecipar a como responder e alimentar repertórios para se safar de situações de risco e violência.

Conforme eu fui andando mais como homem (me apresentando mais segundo essa tal heteronormatividade masculina), o assédio da polícia voltou a acontecer progressivamente. Mesmo sendo preto e jovem, quando eu metia de andar no perfil universitário, bixa preta ou artistazinho, passava liso pela polícia em qualquer lugar. Mesmo em periferia e favela. O tom claro de pele sempre deu passabilidade nos rolês. E observo geral repetir estratégia parecida para também passar ileso nas facetas mais violentas do racismo. E depois essa galera quer vir dizer que essas condições, essas variáveis na equação não nos dão vantagem frente ao racismo.

Vai vendo.

Deixa eu contar um causo.

Lá no Rio, em janeiro do ano passado, eu tava na Lapa andando de bike e berimbau no guidon pois tinha acabado de treinar. Dois policiais do “Lapa Presente” me deram batida. Arrumei um causo com eles. Eles tavam numa esquina da Joaquim Silva com a escadaria Selaron, eu subi pela rua da Sala Cecília Meireles e virei em direção aos arcos. Quando parei pra ver se meu namorado tava no Bar dos Ximenes, um deles assoviou. Eu nem olhei. Aí o outro gritou “ei” e eu ignorei de novo. Armei de levantar pra continuar meu caminho, aí um deles veio até mim. Parou na minha frente. Já chegou perguntando se a bike era minha. Eu disse que não. “É da Itaú”. Depois vieram perguntando se eu tinha roubado, eu disse que não. “aluguei”. Já tava sem tempo e comecei a andar com a bike, quando o segundo parou na minha frente. Caminho fechado, quem tranca a rua sou eu. Cruzei a bike bem no meio da rua. Aí foi um rolê dos diabos.

Eles querendo que eu provasse que não roubei a bike e eu indagando o por quê deles acharem isso. Sabemos por quê, mas queria mostrar o elefante branco na sala. E eu também já falava altão pra obrigar a galera que tava na varanda do Ximenes olhar para a situação toda. Os samango querendo meu documento, eu dizendo que nem tava com ele e, nisso, o outro policial parando entregadores de bike que estavam vindo enquanto o segundo pegava meus dados. Eu fui falando dado por dado mais alto ainda. No final, ainda olhei pra galera no bar (àquela altura já tinha virado a plateia pro meu show) e soltei um “ninguém vai usar pra fazer merda com meu nome, depois, não hein!” Aí o que tava com os entregadores veio com “alá, os seus amig… eles tão agradecendo deu parar eles porque um deles já foi roubado semana passada” eu só virei e disse “Ué, problema é deles. Eu tenho nada a ver com isso, não. Agora eu preciso pegar minha barca pra Paquetá.” Aí catei olhar pro que verificava meus dados e perguntei: “Se eu perco a das 22hs, só meia-noite. Vão ligar pra CCR me esperar? Num vão!” Aí o que tava pegando os dados disse que iam. Eu soltei um “vão porra nenhuma”.

Rapaz…. se eu não estivesse ali no meio da Lapa, cheio de turista em volta e mostrando que ia dar trabalho, o cara catava na porrada! Hahaha! Mas o otário só ficou vermelho de raiva, mesmo. Aí o que tava com os entregadores liberou os outros, voltou e perguntou se tinha conferido meus dados. O segundo disse que o sistema tava demorando. Eu fui e perguntei se queriam que eu roteasse a internet do meu celular, já que a secretaria de segurança não dava internet decente pra eles. Rapaz! A cara dos samango ficou quente. Uma galera no bar já rindo. O primeiro veio me falar que o nome do procedimento era “data check” eu fingi que não entendi. Aí ele veio no deboche “Ué, vc é cidadão e não sabe dos seus direitos? Tem que saber” eu respondi desde quando eu tinha que saber o nome do procedimento policial.

Ali na Lapa é cheio de turista, aí aproveitei que tinha um casal de velhos muito brancos, cabelos brancos, olhos claros e perguntei se eles sabiam o que era “Data Check”. Eles fizeram cara de desentendido. Aí o policial disse que eles não sabiam português. Aí eu disse “Não seja por isso”, virei pro casal “Do you know what’s Data Check?”. Os grigo apavorado balançaram a cabeça que não e meteram o pé. Nisso chega um uber e pede passagem. O policial manda eu ir pro canto. Eu me recuso, viro pro Uber e grito “Posso sair não, pois o polical mandou eu parar aqui. Bem aqui.” O Uber começa a buzinar. Aí o primeiro policial já puto da vida perguntou pro segundo se tinha conferido meu dado. Eu olhei pro segundo, o segundo disse que o sistema não respondeu ainda. Eu ofereci de novo minha internet. Aí o primeiro mandou esquecer e me liberar que já tava dando confusão demais pra eles ali. Fui dispensado e segui meu rumo pra barca.

Deixa eu contar outro causo.

Lá pra abril do ano passado eu tava em quarentena lá em São Paulo. Um dia eu tava indo botar o lixo pra fora quando tinha dois policiais aqui na esquina da Major Diogo com a 14 de Julho, bairro do Bixiga, dando dura num ciclista. Moleque mais alto e escuro que eu. Aí eu parei pra ficar olhando. Eles viram. Voltaram à “conversa” e o moleque lá, constrangidão com a situação. Geral passando, olhando e fazendo nada. Seguindo o rumo. Nisso, um dos policiais atravessou a rua e veio até mim já perguntando o que que e estava olhando e metendo a mão pra me revistar. Eu recuei já soltando um “ô, ô, ô,, mermão … sem máscara e luva vai meter a mão em mim, não!”. Novamente um bar atrás de mim cheio de caras bebendo. Eu fiquei recuando em direção a eles. Aí o policial já veio querendo insistir e eu zigue-zagueando dizendo que, se quisesse saber, que era pra perguntar com dois metros de distância. Tão o dia todo rodando a cidade toda, que eu não queria ser infectado. Aí ele tentou mais uma vez chegar perto, eu continuei recuando em direção aos caras do bar. Eles já pararam de fingir que não estavam vendo e ficaram quieto observando tudo. O outro policial que estava com o ciclista chamou o que estava comigo. O que veio até mim atravessou me encarando puto, me ameaçou e entrou na viatura. O irmão que estava tomando batida picou mula. Eu, de máscara de estampa afro, cabelo oxigenado e 1,68m de deboche olhando tudo rindo. Os caras do bar dizendo que dei sorte. Eu olhei pra eles com indiferença e entrei de volta pra casa.

Aos Fatos…

Quando eu sacaneei o episódio do Lamarçal, as shakotas do Quilomboche vieram me zoar de volta perguntando se, diante de uma arma eu ia soltar uma ginga e golpe de capoeira pra me defender. O que as shakotas não sacaram é que a capoeira não tá aqui pra ensinar a dar uma armada numa pistola ou gingar e desviar de um fuzil. Pode ensinar, mas até tu terminar o giro, já te deram um teco. Mas a capoeira ensina a ter tranquilidade diante da adversidade e do perigo; virar uma labareda por fora e um rio por dentro; a botar a cabeça a todo vapor pra pensar em artimanhas de sair de maneira indireta e fazer com que o outro entre no seu jogo e não você se desesperar jogando o jogo dele.

Outra coisa, a capoeira ensina a jogar com o terreno que você está pisando. Tanto no caso da Lapa quanto no do Bixiga, em São Paulo, eu tô em territórios centrais. Eles são cheios de gente em volta e a polícia tenta fingir a civilidade sueca que ela não tem. Eu não vou bater de frente com policial. Não tenho dois metros de altura e um fuzil no colo. Mas eu sou ator, mano. Toda pessoa preta tem que ser faceira pra viver nesse mundo cão. Eu tenho como criar um caso todinho e fazer com que tudo ali aconteça de acordo com um roteiro que eu estabeleça. Quem dá o texto, define o desfecho, a entrada e a saída de cada um em cena é a minha direção da situação como um todo. E não os protocolos e venetas deles.

Tanto num caso quanto no outro, a polícia chegou com uma série de procedimentos e roteiros na cabeça. A gente já sabe como eles são bem como os seus argumentos pra fazerem o que fazem. Então é papo de se atencipar e impor outro roteiro para a situção e se antecipar a esses mesmos argumentos. Isso tudo, em casos onde é possível fazer. Eu não vou dizer que isso, também, vale pra toda e qualquer ocasião. Eu não vou dizer que alguém lá na favela Costa Barros ou Paraisópolis, às três da manhã, aparece o Bope ou a Rocam e a saída é meter esse loko que vai ter o mesmo desfecho. Nem todo bobo é bom por fazer rir. Por outro lado, entender que ação e reação é cambiada por custos e ver até onde estão dispostos a pagar os seus. É bom vocês sacarem, também, o seguinte: sabendo mudar o roteiro, o lance é ir para onde eles não têm instrução de como agir e a gente sabe por onde argumentar. Com condução e antecipação da situação/discussão, aí é papo de ter tranquilidade pra chegar e conduzir a situação toda.

Outra parada, na roda de capoeira ninguém costuma se meter no jogo. Ninguém pode entrar na roda e se meter num jogo duro esperando que alguém vai se condoer e depois comprar seu barulho pra te ajudar. A mesma coisa na vida. Não dá pra sair na rua achando que a polícia ou seguranças estão lá para te proteger. Como também não dá pra achar que as outras pessoas, mesmo sendo pretas, vão te proteger ou comprar teu barulho em meio a uma batida. Quanto mais distante do branco e daqueles signos que emulam delicadeza e proteção — a mulher e a criança branca -, mais sujeito à violência e indiferença as pessoas estão. Eu não ia contar com as pessoas do bar do Ximenes ou do bar para comprarem meu barulho. Mas eu usava eles como escudo físico e moral na situação toda. Por outro lado, a roda de capoeira é justa. E ninguém acha bonito ou até tolerável alguém fazer covardia além da impalpável medida do “tolerável”. Isso muda de lugar pra lugar, de pessoa pra pessoa. Diante disso, vai sair na rua contando com algo tão movediço? Mais fácil sair calçado pra andar onde for, como ensina o Tàìwó.

Uma última coisa sobre antecipação é a parada de se criar repertórios antes que as situações aconteçam de fato. Quanto tempo do seu dia ou da sua semana você gasta para pensar em situações hipotéticas de perigo ou adversidade? Quanto do seu intelecto e criatividade se voltam para a sua autoproteção? Quando a gente treina uma luta, a gente aprende várias entradas e saídas conforme as filosofias de cada modalidade. Quanto do tempo que vocês despendem assistindo vídeos e tal é voltado para uma luta ou exemplos de saídas pras mais diversas circunstâncias? O quanto vocês já simularam isso para que, quando venha a acontecer de fato, saiba de antemão qual seu limite físico e, sobretudo, emocional para lidar com as paradas. E aí descobrirem esses limites, o que fazem para eles serem temporários e vocês os quebrarem amanhã?

Por fim, tem uma última parada que a capoeira me devolveu, e isso ficou mais forte ainda quando estive morando em São Paulo: a tranquilidade de ir para qualquer lugar que eu decida ir a hora que eu quiser. Quando você entende que qualquer caminho é caminho, que cada caminho demanda um ebó, e que também cada um tem seu euó… mainha!… o mundo vira um parque de diversões. É claro que isso também não significa que a gente vira Superman, que a gente vai se enfiar em tudo que é lugar e com qualquer tipo de companhia. Muito pelo contrário. Você não vai se expor ao perigo desnecessariamente, mas também não vai paralisar diante dele. O mesmo diante das companhias. Não necessariamente vai se expor a qualquer uma, mas também não vai se privar de ver o que elas têm. Como a gente lida com o que nos dão é o grande lance da malandragem de pisar sem medo. Pois segurança não é sobre não correr perigo, mas ter condições de responder a qualquer violência que lhe aconteça.

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Dessalín Òkòtó
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Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.