Àṣẹ

Bianca Melo
revistaokoto
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4 min readApr 8, 2021

Desde pequena fui apresentada a pretos brilhantes. A galera lança os papo de falta de representatividade na mídia, mas não há um preto que eu tenha visto na televisão, cinema, teatro, esportes ou música, que não fosse acima da média, o famoso diferenciado. É lógico que o racismo fez com que poucos tivessem a devida visibilidade, mas nunca vi um preto não se destacar nessas áreas.

Lembro que, antes de ter qualquer tipo de letramento racial, sempre que via artistas negros, principalmente na área da música, eu sempre dizia a mesma coisa: “cara, existe alguma relação entre melanina e as cordas vocais, porque num é possível gente, não existe preto desafinado, isso é de fábrica!!”. Eu sempre ficava abismada com artistas como Whitney Houston, Michael Jackson, Simonal, Gilberto Gil (meu xodó da época de criança – sim, passei a infância ouvindo os bolachão dele no toca disco de mamãe)… cara, o que falar de Fat Family?? Nossa eu babava com aquela família, impossível, mané!!

E nos esportes? Quando eu nasci, Pelé já era Pelé, mas eu acompanhei o final de carreira de Júnior Maestro, já no futebol de areia (ele pra mim tá acima de Zico e vocês que lutem, rs), Didico, Ronaldinho Bruxo… nossa, tantos!! Sempre amei basquete e acompanhava direto as temporadas da NBA, peguei a fase das finais Lakers e 76ers lá no início dos anos 2000 e era apaixonada pela dupla Kobe e Shaq… na real naquele time ali, só os pretin em quadra já faziam miséria. No lado do Philadelphia, eu babava no Allen Iverson (não só pelo jogo hihihi) e no talento do Mutombo. Usei dois exemplos de esportes que acompanho, mas vamo pensar aí: até em esporte branco, preto se destaca. As irmãs Williams no tênis, Daiane dos Santos e, atualmente, Simone Biles na ginástica artística, Hamilton na Formula 1. Mano, veja os destaques e te desafio a não encontrar um preto.

Ilustração: Izaias Oliveira

Quando comecei a entender como funciona a espiritualidade africana e como ela move todas as nossas ações, a lógica melanina x talento, que eu acreditava ser invenção da minha cabeça, começou a fazer todo sentido. Há uma força vital que está dentro de todo o corpo preto, que nenhuma outra raça tem. E é essa força, que supera qualquer tipo de técnica e faz com que tudo aquilo que tocamos seja diferenciado.

Ao descobrir que o nome dessa força é o famoso Àṣẹ, um mundo pareceu se abrir na minha cabeça. Se reparar bem, tudo que é preto e branco toca, perde a força. Pode ter muita técnica, muito esforço, mas parece morto. Veja uma pessoa branca e outra preta dançando a mesma coreografia. Podem ser idênticas em técnica, mas a pessoa preta irá se destacar naturalmente. Porque dentro dos corpos pretos existe essa força de realização, que torna simples tudo que parece custoso ao yurugu (incompleto). E isso se aplica inclusive na capoeira. Se hoje existe capoeira regional, é porque o branco não sabia se movimentar como o corpo preto sempre fez de forma natural.

O caminho inverso é o mesmo. Observe, tudo que era branco, na mão do preto vira outra coisa. Já falei como os pretos são naturais destaques nos esportes, na música, na dança… mas até na fé branca, o preto toca e tudo muda. O sincretismo brasileiro entre catolicismo e candomblé só aconteceu porque a força espiritual africana não foi capaz de se conter ou ser suprimida pela supremacia religiosa branca. Se o preto precisa estar na igreja, ele leva o seu Àṣẹ pra igreja. E quando ele chega, já era.

No fim, a igreja católica lançou um “se não pode vencê-los, junte-se a eles” e aceitou o seu destino, até porque isso ajudou a dar destaque aos seus santos padroeiros. São Jorge não seria quem é, se não fosse por Ògún. Santa Bárbara não seria quem é, se não fosse por Ọya, além de tantos outros santos mártires aí que só se lembram do nome quando associam a algum orixá.

Quando subimos no mapa e vemos o movimento protestante nos EUA, as igrejas pretas são completamente diferentes das brancas, da liturgia ao que é pregado nos seus sermões. Há um movimentar espiritual diferenciado e isso é inegável. O chamado “grande avivamento” do movimento pentecostal aconteceu na Rua Azusa, em uma igreja de pretos. Se você pisar em uma igreja preta norte-americana e não sentir um arrepio ao ouvir um coral de negões e negonas cantando com aquela força, parceiro, vou entender legal não. E saiba, esse papo tem pouco a ver com o que você acredita ou a sua religião, mas sobre algo muito maior.

A grande onda do racismo é que o povo incompleto fez e faz de tudo pra tirar de nós o que sempre foi inteiro. Aprendemos que rebolar é sensualizar e sexualizar nossos corpos, disseram o tempo todo que tudo que é nosso é demoníaco — principalmente a nossa cor — , tivemos que nos esconder pra deixar de ser alvo, seja dos colegas de escola, do segurança no shopping, da polícia. Nos forçaram a esconder o nosso Àṣẹ.

Mas saiba de uma coisa, essa força vital nunca saiu de nós ou deixou de existir, porque ela faz parte da nossa essência. É a espiritualidade em ação, e não somos como os yurgus, não somos seres incompletos. O Àṣẹ é o que nos faz realizar, mais e melhor que qualquer um. Cabe a nós cada dia nos reconectar e ativar esse Àṣẹ, porque ele é o que nos move.

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Bianca Melo
revistaokoto

Eu cheguei no bregafunk ninguém deu nada por mim