A história nos mostra: raça vem primeiro.

Fiu Carvalho
revistaokoto
Published in
5 min readFeb 19, 2021
Ilustração: Izaias

Em algum momento ali pelo final dos anos 1970 e início dos anos 1980 a esquerda brasileira se aproximou do movimento negro, que na época ganhava novo fôlego, e com ela veio a ideia de que se o negro resolvesse a desigualdade de classe, resolveria todos os seus problemas.

Quando a gente fala de problemas de classe, problemas sociais, desigualdade de classe, ou qualquer nome que se dê, estamos falando diretamente da questão de renda, do poder de compra, de consumo. Algo que a esquerda defende no discurso, que uma melhor distribuição de renda resolve as questões da sociedade, dos negros inclusive. Até mesmo que ascendendo socialmente, a questão racial não afligiria mais o negro(a).

Essa ideia cai por terra quando paramos pra analisar diferentes exemplos que aconteceram em todo mundo.

A apresentadora Oprah Winfrey estava em uma loja de luxo na Suíça em 2013, quando uma vendedora se recusou a mostrar uma bolsa dizendo que "era caro demais para ela". Em 2017 o ator Samuel Jackson e o ex jogador de basquete Magic Johnson foram confundidos com imigrantes que estavam fazendo compras extravagantes com o auxílio que o estado dá a esses asilados. A jornalista Glória Maria já afirmou em entrevista que não sofre mais o racismo direto, mas os subjetivos ainda estão lá. Recentemente vimos o jogador Neymar protagonizando respostas ao racismo que viveu em campo.

Esses são alguns exemplos que mostram que ter dinheiro não foi o bastante pra livrar ninguém do racismo. Mas, ainda que estes sejam o bastante, estes são exemplos individuias, são situações pontuais, há outros casos de maior proporção que demonstram que raça está a frente que classe.

A cidade Tulsa, no estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, era considerada prospera no começo do século XX. Nesse período descobriu-se petróleo naquela região, o que acabou enriquecendo muitos brancos e também alguns negros proprietários de terras. Em Tulsa havia o distrito de Greenwood, que atriu muitos negros que criaram seus comércios e serviços e que veio a ser chamado de "Wall Street Negra".

Nos cerca de 40 quarteirões de Greenwood residiam hotéis, restaurantes, joalherias, 2 jornais e mais de 200 outros pequenos comércios entre farmácias, lavanderias, barbearias e salões de beleza, até mesmo uma biblioteca e um cinema, todos de proprietários negros. Nas casas da região moravam médicos, dentistas, advogados e muitos outros profissionais - todos negros, vale lembrar. Havia muita prosperidade na parte negra de Tulsa.

Em 30 de maio de 1921 um jovem negro chamado Dick Rowland foi acusado e preso, por uma suposta tentativa de estupro a uma jovem branca, ao entrar no prédio em que ficava o único banheiro para negro no centro da cidade. Naquela noite um grupos de homens brancos foi até a delegacia para linchar o jovem Rowland e só não invadiram a delegacia porque um grupo de civis ex soldados negros os impediu. Frustrados por não conseguir agredir o rapaz negro os brancos começaram atacar negros aleatoriamente, a situação escalou aos caos rapidamente e foram horas de ataque, casas saqueadas e incendiadas e até mesmo aviões bombardeando a região de Greenwood.

Quando a Guarda Nacional chegou à Tulsa o distrito já estava destruído, nenhum branco foi detido ou responsabilizado. Mais tarde a moça, suposta vítima, retirou a queixa contra Rowland. O número de vítimas até hoje é incerto, os moradores remanescentes em Greenwood nunca se recuperaram do prejuízo e o assunto caiu em esquecimento até poucos anos.

Moradores negros de Tulsa fazem fila para receber refeições do Good Samaritans, em 1º de junho de 1921 — bettmann / bettmann archive

Esse episódio conhecido como "O Massacre de Tulsa" pode parecer muito distante da nossa realidade, mas o Brasil teve um massacre parecido conhecido pelo nome de "Guerra de Canudos".

O vilarejo de Canudos ficava na região norte da Bahia, nas margem do rio Vaza Barris. Ali, em 1893, chegou o beato pregador conhecido como Antônio Conselheiro. Conselheiro começou a atrair para o vilarejo um número cada vez maior de pessoas - a maioria negros ex escravizados que permaneceram na região mesmo com o 'fim da escravidão' legal em 1888 - que estavam sendo dispensados dos seus trabalhos nas fazendas no entorno devido a seca que prejudicava a região.

Desempregados e necessitados, os sertanejos eram atraídos pelas pregações de Conselheiro que prometia prosperidade e encontravam em Canudos a produção da terra de forma coletiva e a formação de multirão, para construções de casas na cidade. Características tipicamente negras - africanas. Os relatos apontam que o vilarejo chegou ao abrigar mais de 5200 casebres e cerca de 25 mil habitantes, números impressionantes pra época e região.

Canudos passou então a incomodar os fazendeiros da região, que perdiam trabalhadores para o vilarejo, a igreja, que perdia seguidores para as pregações do beato Conselheiro e a recém formada República, que tentava cobrar impostos daqueles moradores e encontrava resistência liderada pelo próprio Conselheiro, que era monarquista e repudiava algumas leis novo governo.

Em 1896 uma negociação mal sucedida de madeira para a construção de uma igreja e o boato de um plano de invasão de Canudos a Juazeiro do Norte, serviu de justificativa para ataque do exército, iniciando uma guerra de guerrilha. 3 das 4 investidas foram fracassadas, mas a última teve sucesso. Em abril 1897 a cidade foi invadida e tomada, a população que não fugiu foi morta - incluindo mulheres e crianças - e a cidade foi incendiada. Os jornais da época divulgaram Canudos como uma ameaça nacional, os seus habitantes como criminosos e essa é a imagem que permanece até hoje.

Imagem retirada da Internet

Tanto Canudos quanto Tulsa foram experiências coletivas negras na busca por autonomia e as duas tiveram o mesmo destino quando os brancos perceberam que não teriam controle do que viria a acontecer se aquelas comunidades prosperassem. Elas se tornariam exemplos para outros e, logo, ameaçavam a manutenção do controle branco sobre os negros. Isso me remete a fala de Napoleão sobre a Revolução do Haiti:

Minha decisão de destruir a autoridade dos negros em Saint Dominique - Haiti - não se baseia tanto na consideração de comércio e dinheiro, mas na necessidade de bloquear para sempre a marcha dos negros no mundo.

Veja que a onda de manifestações antirracistas que se espalharam pelo mundo em 2020, após morte do estadunidense George Floyd, se transformou em manifestações antifascistas quando chegou ao Brasil. Isso porque se ficasse apenas o discurso antirracista a esquerda (branca) também estaria implicada, já que as estatísticas relacionadas a violência, prisão e morte de negros só piorou durante o período em que a esquerda esteve no poder.A questão social pode ser válida para os brancos - e nem a eles tem servido muito, mas, como demonstrado nos exemplos postos, a ascensão de classe ou a geração de renda incomodam quando acontece com o negro. Colocar o racial como algo secundário é uma cortina de fumaça no caminho do povo negro, o mantendo sobre a bandeira de partidos políticos que precisam das estatísticas negras para usar a suas campanhas. Mantendo o protagonismo branco e negro sobre sua tutela.

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