Academia, se saia. Preto, fique.

Priscila Argolo
revistaokoto
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3 min readJul 2, 2020

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Imagem retirada da internet — Tradução da legenda: “Ser preto não é o que eu estou tentando ser, é o que eu sou.

“Ser preto não é o que estou tentando ser, é o que eu sou” — Por fora não tem como negar, mas qual é a cor do seu recheio?

Faz uns dias que matuto sobre escrever uma carta aberta sobre ter saído da faculdade, quais foram as motivações e o por quê larguei tudo na estaca final. A única verdade que sei é que tem muito mais a ver com responsabilidade do que com qualquer outra coisa. Desde pequena ouço muito sobre ser uma pessoa responsável, mas tem pouco tempo que entendi que não se trata apenas de trabalhar, estudar e fazer as obrigações direitinho. Vai muito além disso e se aproxima muito mais de reciprocidade do que eu pude imaginar.

Desde quando entrei na faculdade, nunca consegui seguir os cronogramas e as demandas que os currículos pediam. Era sempre uma luta pra terminar um semestre, tipo, não gostava de ir para a aula, não gostava de fazer as lições, só contrariava, só questionava e sempre rolava um asco de ter que lidar com o teor canônico — lê-se europóide — que o curso de letras exigia; a única coisa que me salvava é que eu não precisava de muito esforço pra aprender, eu só não queria estar lá ouvindo o que grego gosta de ouvir. Pra todos, isso era irresponsabilidade.

Já entrei sabendo de movimento negro, de alguns percursores, mas com o tempo que fui entendendo como o racismo funcionava no caminho dos pretos acadêmicos, descobri que a minha função ali dentro não fazia sentido, pois a minha responsabilidade não era com o mundo branco — o jeito de falar, de escrever, de se posicionar. Entendi que as “rodas de cura” de mulheres pretas só serviam pra elevar um gênero e desumanizar o outro; saquei que tudo de preto que entra lá, sai mais branco do que a encomenda; percebi que a pretada de lá tá ligada que é desonesta, mas os editais e as indicações acabariam se realmente vestissem a camisa de Marcus Garvey, Malcolm X, Steve Biko ou Kwame Ture, não de Du Bois, Martin Luther King Jr. ou Nelson Mandela. Ou seja, eu não queria ser mais a mulher que corria por editais e cadeirinha na casa; eu queria ser autônoma.

Com tudo isso no campo das ideias, ano passado fui em um evento na universidade que me deu um botadão na mente. A Winnie, que começa a falar de feminismo negro a partir de uma mulher branca; o Deivison, que falou de Fanon como um revolucionário, não como um acadêmico coitado que teve seu tcc negado; e o Uã, que falou sobre descolonização do pensamento, no qual eu perguntei sobre essencialismos afrocêntricos e ele só disse “no dia que vocês pararem de refletir em cima de textos prontos e começar a ler por vocês mesmos, essas perguntas acabam”. Assim que acabou, voltei pra casa pensando que deveria terminar o curso e voltar pra SP a fim de assumir o compromisso que deveria ter assumido há muito tempo com minha família e meu povo.

Semestre chegando ao final, quem diria que eu estaria fazendo tudo certinho, frequente nas aulas, fazendo todos os trabalhos sem rodeios, até que me perguntei: por que uma mente brilhante e excelente como a minha vai ficar se sujeitando ao mundo branco pra ser notada? Por que raios vou ficar me rastejando em um espaço que não foi feito pra mim? Quem em sã consciência fica babando ovo pra um lugar que adoece e acaba com sua cultura? Sai fora, parça. A verdade é que eu não tive coragem de largar de imediato algo que me embranquecia, mas fui na sede pra largar o que sempre se fez preto em mim.

Matutei, matutei e resolvi largar de vez; sem devaneios, sem poréns.

Entrei Will Smith e tava quase me tornando um Carlton Banks.

Quando saímos da posição de vítimas e passamos a perceber que somos maiores do que nos fizeram acreditar, tudo muda, tudo cresce se pegarmos o poder de realização em nossas mãos; aqui nada passa batido por Exu e é necessário responsabilidade e reciprocidade pra conhecer a nós mesmos. Ai de mim se não aprender a fazer o ebó, pois tô recebendo mais do que botando.

Iê, devo muito ao Kilumbu Òkòtó que me ensinou.

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Priscila Argolo
revistaokoto

Ninguém me deu permissão pra sonhar, mas eu já sabia o quanto era bom. Mãe do Jota, companheira do Marquinhos e a humana da Akira.