As honras a quem se fez pilar

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
4 min readMar 25, 2022
Ilustração: Diego Alberto

Hilária Batista de Almeida, reconhece esse nome? Tá ligado que foi um dos pilares do Renascimento Afrikano na região conhecida como Pequena África, na zona portuário do Rio em meados do século dezenove e início do século vinte? Sabe da importância dessas “Tias Baianas” nesse corre de vida-e-morte Preta? Se liga, aqui:

Foi em 23 de abril de 1854, em Santo Amaro da Purificação, Bahia, que nasceu Hilária Batista de Almeida, Tia Ciata foi como ficou mais conhecida. Como nos conta Abiṣogun Olatunji Odùduwà, em Às Irmãs, lá a jovem Hilária conheceu o Candomblé e foi uma das fundadoras da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira.

Já na capital baiana, pra onde seguiu ainda bem jovem, Hilária mergulharia nas águas do Culto aos Orixás, de origem iorubana. Aos vinte e dois anos de idade, em 1876, como fizeram muitos Afrikanos fugindo da perseguição política-cultural e policial e da dureza das condições materiais, Tia Ciata deixou Salvador rumo à capital do Império, o Rio de Janeiro.

No Rio, Tia Ciata viria a cumprir, como nos fala Olatunji, seu propósito de fortalecer a comunidade preta e criar as bases para algumas das maiores manifestações culturais africanas na Diáspora: o Candomblé, o samba e as escolas de samba.

Depois de um tempo na Rua General Câmara, Hilária foi para a casa de Miguel Pequeno e Amélia Kitundi. O casal Afrikano fazia de sua casa um tipo de residência de passagem para que pessoas Pretas vindas da Bahia pudessem encontrar abrigo, apoio e orientação para dali seguirem seus rumos na capital imperial. A mesma prática viria a ser adotada por Tia Ciata em sua residência anos depois na Pequena África.

Seguindo os caminhos de suas mais velhas, as Tias Baianas, Hilária foi vender quitutes no centro do Rio. Mesmo em meio à perseguição policial e política instituída por lei contra o Candomblé e todo e qualquer expressão cultural Afrikana, Hilária ia às ruas com seus fios de conta, pano da costa saia de baiana, seus idés, linda e radiante, vender suas delícias culinárias. A filha de Ọ̀ṣun vendia quindins, cocadas, bolo, manjar, milho cozido, entre outros. Além de doces e da culinária de terreiro, como nos fala Olatunji, Tia Ciata era íntima dos segredos da culinária Afrikana e exercia seu poder de alimentar seu povo.

Tia Ciata foi iniciada no Ilê Axé Iyá Nassô Oká, pelo sacerdote Afrikano Bangbose Obitiko. Assim como Mãe Aninha entre outras Ìyá, nos conta Olatunji, ela teve por missão propagar a cultura e civilização Afrikanas no Rio de Janeiro. Foi no Terreiro de João Alabá de Ọmọlú, fundado pelo próprio Bangbose Obitiko, em que Tia Ciata viria a se tornar Ìyá Kékeré, que ela deu os primeiros passos nesse caminho que era o dela.

Era um período em que muitos filhos e filhas de Afrika empreendiam esforços imensuráveis para reconstruir em terras renomeadas como brasileiras lares, organizações e instituições para os Afrikanos, uma Afrika além-mar. Isso tudo sob brutal perseguição político-cultural e policial do conjunto das instituições imperiais e, mais tarde, republicanas. Pois muda-se o regime, mas segue, como fundamento da instituição colonial de nome brasil, o ódio/desejo anti-africano.

Com as campanhas eugenistas de “higienização” na zona portuária na segunda metade do século dezenove, Tia Ciata e sua família se mudaram para a Praça Onze, onde residiu até o dia de sua passagem, no ano de 1924.

E foi essa a região que o artista compositor Heitor dos Prazeres batizou de Pequena África. Local de reunião de famílias Afrikanas em torno de todo tipo de expressão e manifestação cultural da Diáspora Afrikana: macumba, Candomblé, capoeira, batuque, umbiga, partido-alto, samba, maculelê, maracatu, jongo, coco, congada, umbigada etc.

Ali, bem no centro da região, estava a residência de Tia Ciata — dela mesma, a grande Mãe, matriarca, partideira, sambista, dançarina, que abrigava, cuidava e alimentava o corpo e o espírito de seu povo.

Em tempos em que, na busca de ineditismo acadêmico e de um lugar prestigiado na casa grande, com o aplauso dos Pretos bobos, alguns aí se lançam nessa bobagem de aproximar Ṣàngó de Rosseau, Ọya de Freud, se reivindicando o próprio útero do renascimento de Afrikanos, que esse curto relato dessa grande Mãe Afrikana nos inspire algum discernimento e interesse de buscar e reconhecer quem, de fato, na nossa história cumpriu e segue cumprindo a missão de lançar e zelar pelos fundamentos e pelas bases dos Renascimentos Afrikanos de ontem e de hoje. A honra a quem se fez pilar, hostilidade aos oportunistas.

--

--