Berimbau Ọ̀páṣoro

A roda de Capoeira Angola é a realização de um grande ritual. O capoeira, quando está entregue de verdade à roda, seja jogando, seja tocando, seja assistindo, entra em transe. Nesse espaço/tempo onde ocorre esse grande ritual, cada corpo preto vibra uma energia que, em interação, fluxo e dinâmica, culmina em transe.

O ritual da roda de Angola, em seu local e em seu momento, torna-se uma espécie de portal de ligação do Ayé com o Ọrùn.

Como eu já disse em outro texto, não acredito que a gente perca a conexão com nossa ancestralidade, nossas divindades ou com a memória do nosso passado glorioso. Meu entendimento do que ocorre é que todo processo de invasões, espólios, estupros, sequestros e escravização nos causaram propositalmente e consequentemente uma redução da nossa capacidade de acessar nossas memórias mais profundas sobre esse passado e essa herança e também nossa capacidade de compreender todas as energias que nos cercam.

Não houve desconexão. O que nos liga ao nosso passado e ao cosmo é forte demais pra ser desfeito.

Existem diversas formas de restabelecer ou de reativar essas conexões. Fazemos isso por meio de música, dança, utilizando palavras de encantamento (ọfọ̀), meditação, jejum, sacrifícios, ẹbọ, etc. Todas essas ferramentas se tornam um instrumento ritual para cumprir a finalidade de restabelecimento ou reativação de conexão.

Simbolicamente, objetos com o formato de cajado ou mastro normalmente são mais facilmente associados como ferramentas para essa reconexão espiritual. Exemplo disso é o Iṣan utilizado pelos Ojẹ no culto a Egúngún ou o Ọ̀páṣoro, cajado ritual utilizado por Ọbàtálá.

Aparentemente esse instrumento serve apenas de amparo ao velho Òrìṣà, primogênito de Olódùmarè. Mas todos sabem que trata-se de uma ferramenta poderosíssima e que sua principal função é ligar o Ayé ao Ọrùn.

Assim como a ferramenta de Ọbàtálá, o berimbau também cumpre a função de realizar essa ligação. O berimbau é o causador do transe. Ele é a chave que ativa o portal no espaço ritual da roda de Capoeira Angola.

Ilustração: Izaias

Berimbau Ọ̀páṣoro. Sem berimbau não há roda. Sem berimbau não há capoeira.

O Gunga, no seu primeiro “ton” já é capaz de provocar transe. Na roda, os três berimbaus tocados pelos capoeiras causam as vibrações que produzem a melodia que despertam esses e os demais corpos para a roda, para o bailado da ginga, para o jogo, para o ritual e para o transe. Ao toque do berimbau, o portal entre o Ayé e o Ọrùn é aberto e as energias dos dois mundos se convergem.

Mas o ritual da roda de Capoeira Angola não se encerra ou se limita no toque e no jogo. Rituais possuem forma, ordem, composição, etapas e elementos. Gunga, médio e viola são as ferramentas rituais essenciais, mas eles precisam de corpos que os toquem, dos demais Instrumentos que os acompanham, do cantador para puxar a ladainha e os corridos, além dos demais corpos para responderem em canto e jogo ao chamado dessa orquestra ritual.

Berimbau Ọ̀páṣoro. Sem berimbau não há roda. Sem berimbau não há capoeira.

A Capoeira é indefinível. Ela é música, é dança é ọfọ̀, é transe, é sacrifício, é ẹbọ, é meditação e é até jejum. Pois, como disse Pastinha, “a capoeira é tudo que a boca come e tudo que o corpo dá”. E dentro do tudo está o nada. Nela, na capoeira, se fazem todas as ferramentas de conexão em um só lugar.

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