Camadas do som

Marina Piedade
revistaokoto
Published in
4 min readSep 27, 2021
Ilustração: Acácio Òkòtó

Esses dias me surgiu a seguinte reflexão, é muito louco poder observar como manifestações pretas se dão, geral já ta ligado no papo de que nossa cultura de uma forma geral se da em comunidade, também já sabemos da importância da roda para nós, e isso tudo tem a ver com como o conhecimento preto se dá.

Okay!! O papo ainda ta meio confuso, mas vou seguir a reflexão pelo aspecto musical.

O ensino musical de um ponto de vista europeu se da na maioria das vezes entre o professor e o aluno, duas pessoas, há sempre uma introdução enorme sobre o instrumento, os fundamentos, os materiais, as coisas que se pode executar… Mas sempre de forma teórica, a prática em si só vem depois de muita teoria. E mesmo assim estamos falando de prática individual, as “dinâmicas em conjunto” só são trabalhadas muito lá na frente. Isso empobrece tudo o que a experiência de aprendizado pode ser, isso cria limites muito básicos e baixos, impossibilita que o aprendizado seja executado na sua capacidade máxima, e pior, quando se trata de música, pode minar nosso poder de criação porque faz a gente se contentar com pouco, com o mínimo, com uma experiência universal do que significa aprender e daquilo o que queremos aprender. Estamos falando de aprendizado, mas é com tudo, yurugu reduz as experiências à coisas incompletas e com a colonização tenta universalizar esse modo de ver e lidar com o mundo.

Agora, a didática de aprendizado preto é outra historia, as coisas se dão em comunidade, em coletivo, em roda. Isso nos obriga a obedecer a um tempo que não é necessariamente o nosso nem o do outro, é aquele criado no momento pelo coletivo, isso nos força a desenvolver não apenas aquilo o que nos agrada e nem no nosso ritmo individual, mas no ritmo que a comunidade precisa. Se cria um senso de responsabilidade, de atenção e cuidado, de entender que a parada não necessariamente precisa de você para acontecer, mas que uma vez estando dentro, sua presença serve para acrescentar e não para atrapalhar.

Não estou dizendo que não existe ou que não há lugar para erro, que não há critério, até porque estamos falando do processo de aprendizagem e nada se aprende do dia pra noite, o que estou dizendo é que há um esforço pra fazer a parada acontecer, num lugar em que o “eu” não faz tanto sentido sozinho porque o que se cria é em conjunto e exige entrega e dedicação num ritmo ditado por todos. A experiência se da num todo, em completude, você aprende por todos os poros e células, pelo que enxerga e escuta e daí começa a criação de coisas extraordinárias, num nível de complexidade que não conseguimos explicar dentro dessa mentalidade branca, como o samba, o jazz…

Nos meus primeiros treinos de ritmo no Cais do Valongo eu ficava tensa, porque sabia que quando começasse o som eu tinha que ser capaz de acompanhar, o desespero de ter que tocar e cantar ao mesmo tempo, de saber que a hora do “quem sabe faz ao vivo” e “quem não sabe corre atrás de saber” estava chegando. Porque também é isso, o pagode não vai deixar de acontecer só porque você ainda não sabe, justamente, procura-se saber e esse processo leva um tempo, mas é ali junto de todo mundo, você não aprende a tocar e acompanhar apenas sozinho, é fundamental a roda. Com o tempo vai se desenvolvendo e adquirindo a sensibilidade de saber que horas entram cada instrumento, em que momentos se canta, seu corpo vai aprendendo a sentir, e nós sentimos quando todos os sons se encaixam assim como também sentimos quando algo está fora , é nosso senso de ritmo, aquilo o que também nos permite sentir os sons no corpo e produzir movimento, deixar as ondas atravessarem as esferas físicas e dançar, tudo parte de um mesmo lugar.

Agora o bagulho fica doido hahaha, porque tudo isso nos permite o transe, todos esses momentos de entrega, de roda, de criação de música e de dança, tudo isso nos possibilita o estado de transe. Aquele de quando você ta na roda de samba ou no baile dançando horas direto, onde o corpo tem vida própria (e tem!!) e precisa se manter em movimento, precisa fluir a energia e deixar passar o som, de quando você toca o tambor também por horas e seu corpo sabe o que fazer e tem vontade de fazer, e só depois se percebe que as mãos doem, tem a ver com a esfera espiritual. O transe nos alimenta. Assim como são necessários os rituais, precisamos também do transe, da música, das batidas do tambor ( nos seus variados ritmos e desdobramentos ), da dança, daquilo o que nos transporta para esse outro lugar que existe em paralelo e junto desse aqui. Precisamos dos momentos de transe porque eles alimentam o espírito de uma forma que ainda não consigo dimensionar em palavras (e talvez nunca consiga).

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