Cego é aquele que não quer ver

Bàbálóore Ọmọwale Apókan Òkòtó
revistaokoto
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3 min readAug 31, 2021

Apesar da deficiência, um cego que faz um mesmo percurso várias vezes, é capaz de saber em que ponto do caminho ele está. Ele toma por base a sinuosidade das curvas e as subidas e descidas dessa estrada. Além disso, ele pode usar o olfato e a audição pra identificar locais específicos nesse caminho, podendo até servir de guia para pessoas que possuem uma visão sem deficiência.

Por Iza Oliveira

Por conta de sua deficiência, o cego está sempre muito atento a seus demais sentidos para que consiga suprir a falta daquele que é tão importante pra lhe tornar independente. Na busca por uma mínima autonomia, os deficientes visuais desenvolvem e valorizam cada vez mais os demais sentidos. Além disso, em muitos casos, muitas dessas pessoas desenvolvem habilidades que jamais teriam desenvolvido se tivessem a visão em pleno funcionamento.

Junto a isso, eles criam rituais pra todos os momentos de suas vidas. Colocar os objetos sempre no mesmo lugar. Manter um rotina de mesmo percurso para lugares constumeiros. Essas são algumas das estratégias rituais que pessoas cegas usam pra tornar seus cotidianos menos difíceis.

Eu tô falando disso aqui pra chamar a atenção da galera pra dois pontos nessa história toda.

1 - Não devemos esperar a falta de um sentido ou alguma incapacidade pra desenvolver outras. O que leva os deficientes visuais a desenvolver tão bem outros sentidos, é a perde desse que o levaria à incapacidade para um dia-a-dia autônomo. Isso mostra que todos nós temos plena capacidade de nos desenvolver em qualquer campo das habilidades humanas. A especialização é importante mas ela não tira a necessidade do conhecimento geral.

2 - Não devemos agir apenas sob demanda. Não devemos esperar apenas motivadores externos pra nos mover na direção do desenvolvimento das nossas potencialidades. Esses motivadores externos são importantes inclusive para nos despertar à vontade do fazer. Pra nos despertar o àṣẹ. Mas não podemos ficar amarrados a eles, porque eles podem simplesmente deixar de existir, pois não temos controle sobre o que tá fora. Por isso é extremamente necessário encontrar e desenvolver motivadores internos. Fazer com que a vontade seja despertada a partir de si próprio. Isso é manter o controle sobre si, sobre o seu àṣẹ, e inclusive sobre em que direção essa energia será propagada.

Tudo o que tá sendo dito é também sobre vontade de viver. O cego encontra sentido na vida quando se vê desafiado a se redescobrir. Ele se vê motivado a descobrir suas capacidades a fim de conquistar dignidade.

Mas a cegueira ou a perda de outro sentido, membro do corpo, órgão ou qualquer habilidade mais facilmente tangível, não devem ser nossos únicos motivadores.

Ontem eu estava com uma tia que perdeu uma das pernas por conta de complicações com a diabetes. E quando estava a ajudando a descer as escadas com a cadeira de rodas, ela pediu desculpas por estar dando trabalho e tal. Eu disse que não tinha problema e que eu tava no mínimo retribuindo todo o trabalho que ela já teve ajudando a cuidar de mim quando criança. E logo depois ela disse: "mas logo logo isso acaba, pois com colocar minha prótese e vou voltar a andar sozinha e fazer tudo o que eu fazia antes."

Sacaram o motivador interno? Sacaram que ela estava determinada a sair da condição de dependência e retomar sua autonomia? Por ela mesma, independente do que dissessem, dos olhares de pena, das expressões de coitadismo. O àṣẹ dela, o controle sobre ela mesma está ativo e pronto pra ser retomado porque ela tem esse atributo muito bem desenvolvido. Ela tem dignidade!

Nós nos colocamos em condição de limitação e ficamos esperando os motivadores externos pra nos mexer a partir deles. Mas se manter nesse lugar é praticamente se manter em condição de escravidão. Nos voltar pra dentro pra desenvolver nosso próprio àṣẹ e a vontade a partir de nós mesmos é um dos maiores passos pra alcançarmos nossa libertação.

No fim das contas, fica mesmo a velha máxima: "Cego é aquele que não quer ver".

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