Com você não, cê é o café com leite

Zezi Masomakali
revistaokoto
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6 min readOct 20, 2021
Por Iza Oliveira

Observei alguns desatinos nesse último acontecimento envolvendo o Nego do Borel.
Geral ficou puto porque Emissora X estava transmitindo um crime ao vivo (dado que os peritos de sofá assumiram que aquilo foi um estupro, vamos chamar isso de crime).
Tiveram a pachorra de falar que se fosse em Emissora Y aquilo não aconteceria. A produção avisaria e retiraria o Borel de lá antes daquilo acontecer.
Ousaram dizer que a vítima não teria passado por nenhum interrogatório sem orientação jurídica ou apoio emocional e que a emissora Y cuidaria para que ela, a vítima, não tivesse que ter contato com seu agressor.
No reality da emissora Y, teria alarmes sonoros, todo um aparato de verificação para as imagens, lá haveria controle e disciplina sobre a ingestão exagerada de bebida alcoólica para que a vítima nãose tornasse vítima.

Daí logo me veio os episódios de racismo sofridos por diversos participantes do BBB. Mas quero ficar nos mais recentes porque parece que geral tem memória curta, vamos nesse de 2021, sofridos pelo Lucas e pelo João dentro do programa.
Ninguém avisou, não teve alarme. Foi violência comprovada por câmeras, gravadinho. Crimes de racismo.
Como no caso da provável violência da Fazenda, as vítimas foram diminuídas e novamente violentadas.
Expostas ao vivo.
Lucas foi proibido de comer, taxado de raivosos, louco e desequilibrado, um risco iminente para si mesmo e seus colegas. Mesmo monitorando e afirmando que ele tinha problemas com bebidas, um diagnóstico dado por peritos, deram mais e mais bebida a ele.
João teve que aceitar o silêncio com receio
de parar no mesmo lugar que Lucas, sem ter a mínima ideia que do lado de fora ele estava correto.
O agressor dele caminhando pelo mesmo ambiente, com os mesmos direitos e tranquilidade de quem é inocente.
Ambos foram submetidos a presença de seus algozes, no bom e velho estilo escolar de "Abraça seu colega! Não pode bligá, nem baitê, nem moidê".
Tiveram que assistir nos dia que seguiram, o apresentador do famigerado programa da vida real fazer um discurso a fim de diminuir o tamanho dos crimes que haviam se passado ali.
Mais tarde, já fora da casa, descobriram que ambos os Zé ruelas ganharam contratos no streaming da mesma emissora, deram entrevistas, tiraram fotos, estavam nas redes sociais com suas caras de pau.
Karol Conka ganhou uma série para limpar a barra dela de feminista bacana que desaprendeu a compaixão. Rodolfo ganhou livro, consultoria e treinamento antirracista (no tempo Record de 2 dias), fez live e até o show para os finalistas. A música de trabalho dele ficou entre as mais tocadas nas rádios e plataformas digitais naquela mesma semana.

Agora volto ao raciocínio que muita gente apostou no caso do Nego do Borel:
Será que a Emissora X teria agido rapidamente a fim de proteger as vítimas, suas famílias, telespectadores e afins?
Será que ela estava de fato comprometida com a verdade e com a saúde dos participantes e mais, seria imparcial com QUALQUER tipo de crime?

Se tu sabe fazer essa conta com direita e esquerda, com laranjas, vai saber fazer com as maçãs e a resposta você já tem.

Racismo ainda é crime ou vai ser crime algum dia?
Ainda haverá punição?
São perguntas pra todo negresco confiante na lei, que não foi feita pra ajuda-lo, fazer.
Se você tá por dentro dos papos que damos aqui, com toda certeza já tem a resposta pra isso e não vai perder tempo se perguntando um absurdo desse isso.
De certo vai estar interessado em cuidar pra não ir onde essa galera vai, não fazer amizade com eles e não bobear perto de qualquer um.

Outra coisa que passou pela minha cabeça foi um ensinamento que toda pessoa preta ganha ainda bem pequena, isso vem naquela cartilha básica de "Como sobreviver ao racismo e voltar pra casa no fim do dia sendo uma pessoa preta".
Tudo pode mas nem tudo te convém.
Não se pode fazer coisas de branco sendo preto.

Mais uma das coisas que eu fiquei maquinando:
Pessoas pretas, em hipótese alguma, podem ser dar ao luxo de tratar seus corpos com tamanho desmazelo, se entupindo de entorpecentes de qualquer espécie. Acompanhados ou não.
Passei por esse aqui várias vezes ao longo da vida, tá ligado ao autocuidado presente na nossa cultura e posso dizer que é o alicerce da nossa espiritualidade.
Aquele papo de "Onde seu orixá não pode entrar você não deve ficar" elevado a potência máxima e nem tô falando de religiosidade hein?!
Beber até cair, até apagar, até perder a noção de onde está e o que fez, ficar tão grogue a ponto de alguém ter que te vestir, nunca nos foi permitido.
Nunca nos foi permitido ignorar o aviso de local perigoso quiçá fazer isso mais de 20 vezes.

Uma grande bobeira achar que emissora X ou Y são diferentes.
A prova disso é a Emissora Y ter coragem de exibir em horário nobre, uma novela que retrata sequestro, tráfico de pessoas, roubo, assassinato e diversas violências com um tom de "Olha aí, nem foi tão ruim assim".
Esqueci de dizer que isso pra eles é totalmente justificável já que todos esses crimes foram cometidos contra pessoas pretas e na época da escravidão.
Esse tipo de crime pode e será televisionado.
O imperador sentado em volta de uma fogueira com negros e indígenas enquanto eles pleiteavam melhoras para seus respectivos povos.
Oi???

Se isso nos choca eu imagino a afronta, o baque pros brancos verem que Emissora X, exibindo um "crime" contra a mulher igualmente branca. Sendo que eles são de Gzuz, atualmente tem em sua grade uma programação feminista e com protagonismo feminino.

As coisas começaram a dar errado quando os brancos falaram que somos iguais.
Quando quisemos acreditar nisso e nos acomodar.
Nunca fomos iguais e nunca seremos.
A roupa que serve a eles não veste nosso corpo e se veste, não protege, só nos evidencia como fracos e alvos.
Tá passando do hora de entendermos que ter mais de uma pessoa preta naquele espaço não fará ele ser seguro.
Tá passando da hora compreendermos que o outro não pode ser responsável pelos custos de decisões que são tomadas individualmente e que depois de violentados ou acusados não tem volta.
O tempo urge para que saibamos como tratar situações como essa do Nego do Borel, João e Lucas da nossa forma e não nos moldes brancos.
Na verdade elas nem deveriam ocorrer, eles não deveriam estar lá, porque que anda aqui não pode andar lá.
Você não é a pedra que Exu jogou hoje acertando no pássaro ontem para estar em dois lugares ao mesmo tempo e principalmente um que não te cabe, então tome tenência de gente!
Acha seu lugar depressa, você está atrasado e se não tem essa sensação, tá vivendo no mundo de Alice e não nos interessa sua aproximação.

De tudo que refleti acerca desses fatos todos, além da certeza que um branco nunca irá parar mesmo depois que seu alvo não esteja mais vivo, porque logo ele arranjará outro, algo ficou muito mais nítido pra mim.
Os brancos não ficaram com raiva por exibirem um suposto, e muito mal suposto, estupro na televisão.
Eles ficaram bravos pela simples falta de costume.
Eles se assustaram porque os corpos que eles estão acostumados a ver sendo violentados ao vivo, com direito a replay em tudo que é programa da grade das emissoras X, Y e muitas outras, são pretos.
Mesmo que não tenha ocorrido de fato, a ideia de saber que eles estão sujeitos aos mesmos perigos que nós corremos causa um pavor incalculável.

Nós somos tipo aquelas crianças que quando entram na brincadeira vale tudo, só não vale a gente ganhar nada. Se perder é somado, se for ponto pro outro vale também,mas se for jogo individual… Vixi! Aí não pode, aí somos café com leite.

O sempre "sobra pro mais escuro" é real e tá engolindo quem tá de bobeira na pista.
Fica aí perguntando até quando, que eles tão perguntando quantos de nós.

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Zezi Masomakali
revistaokoto

Pretinha, Okotoshica, filhota mais velha do KZP, a sede caçulado Okoto que fica em BH- MG.