Corra!

Lisimba Dafari
7 min readJan 15, 2020

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Texto publicado originalmente em julho de 2017.

Ilustração: Jermaine Rogers

Nunca fui fã de filmes de terror. Possivelmente pelo mesmo motivo que detesto montanha russa, bungee jump e derivados. Pagar pra sentir medo é algo que, pra mim, simplesmente não faz muito sentido. Não só porque o temor pela minha vida é um serviço que a PM me oferece de bom grado, mas também porque a ideia de me acostumar a sentir medo e aprender a ficar chapado de adrenalina não me agrada nadinha.

Porém, quando saiu o trailer do filme Corra! (Get Out, 2016) de Jordan Peele fiquei desesperado pra assistir. Em parte porque a proposta de abordar o racismo como a fonte do pavor é algo com que realmente posso me identificar. Cotidianamente. Em parte porque no fundo sei que me deparar com pessoas brancas acomodadas no seu sentimento de natural superioridade até mesmo no convívio mais íntimo é bastante comum. [Este texto contém spoilers]

“Mãe, pai, vou trazer meu namorado negro pra jantar aí em casa”

Desde o trailer algo que me chamou muito a atenção foi a informação de que o roteirista — conhecido nos EUA por esquetes hilárias como essa e essa — se lançaria como diretor e produtor do filme. A proposta de que uma pessoa negra ocuparia esses três cargos tão importantes na produção cinematográfica me fez pensar nessa coisa do negro autor. Nessa mente negra que se permite brincar de Deus e que, sobretudo nesse gênero, escolhe quem morre e quem sobrevive — algo bastante raro para nós desde a colonização. Deus esse que não faz vista grossa diante do racismo e faz exemplo de alguns brancos que não aprenderam a conviver apesar dos séculos passados. Deus esse que poupa um homem negro de um desfecho violento/prematuro, ao menos na ficção.

A segunda coisa que despertou meu interesse já de cara foram as situações escolhidas para o clima de tensão: primeira visita aos pais não-negros do(a) parceiro(a); hipnose sob comando brancos; pessoas negras “que não veem cor”; e uma sala cheia de gente branca (e rica) com mais de 45 anos — situação e indivíduos que me já provocaram traumas/gatilhos diversos. Entretanto, acredito que o medo maior veio da dúvida acerca da inocência ou cumplicidade da namorada branca. Do medo real que passei a ter depois que resolvi não deixar o racismo de ninguém passar em branco: confirmar, só quando já se é tarde demais, que alguém próximo a mim compactua — ainda que por omissão — com o racismo (inconscientemente ou não). No caso do filme foi após quatro cinco meses de namoro, mas já vi acontecer após anos de amizade/casamento/etc. [Trilha de suspense]

“Com seu porte e pré-disposição genética, se você realmente levar seu corpo ao limite e treinar, você ficaria um monstro”

No primeiro jantar com a família da namorada, Chris assiste toda fachada de “desconstrução” encenada pelos outros membros ser abalada com a chegada do cunhado e todo seu ímpeto inquisitivo e intrusivo. Uma abordagem completamente distinta do sogro, que em seu desconforto fica a todo momento passando recibos de não-racista — através de gírias, referências a viagens e saudações a figuras como Obama. Já as mulheres da casa demonstram não divergir tanto em suas abordagens. As duas apresentam sintonia ao constantemente amenizar e desconsiderar todas as manifestações de racismo que surgem — além de projetar maior equilíbrio social e emocional como bem notou a Gabi. Possivelmente uma tática aprendida através de suas experiências com o gaslighting dos homens de sua vida.

Diferenças sutis, mas que conjuntamente são suficientes para disparar alguns alarmes para os mais versados. Pois o vocabulário racista pode ser vasto, mas a recorrência dessas interações tornam qualquer pessoa negra suficientemente fluente em seus múltiplos códigos. Basta querer ver! O que certamente não foi o caso do nosso protagonista. Confesso que só reparei em algumas dessas coisas na segunda vez em que assisti. Sobretudo o real peso das “dicas” fitness do cunhado. Nem sei quantas vezes já recebi conselhos iguais. Nenhuma delas de um profissional de educação física, mas sim de pessoas bem próximas bem intencionadas. Se você puxar pela memória vai perceber que já teve um monte de coach dando pitaco gratuito sobre como gerir sua vida e corpo também. O problema nem é o aconselhamento em si, mas sim a reação disciplinar tomada quando por quaisquer motivos as “sugestões” não são automatizadas.

“Agora você está no abismo interior”

Quando o assunto é relações interraciais, raramente ouvimos falar dos familiares do casal. Não apenas se são a favor ou contra, mas se a família branca (principalmente) conseguiu se reeducar sobre racismo para melhor acolher o novo membro ou os descendentes desse enlace. Quando, por exemplo, mulheres brancas como Fernanda Souza e Kim Kardashian vêm a público dizer que passaram a se interessar mais sobre o assunto pela responsabilidade que terão ao criar crianças negras fica a dúvida: casar com um homem negro não foi suficiente para despertar tal curiosidade?! Esse tipo de incoerência se explica, em muito, porque somos ensinados que racismo é coisa de pessoas monstros sem amor, quando na realidade trata-se de pessoas comuns e se manifestam, também, em ações historicamente normais.

Ao longo do filme somos apresentados a hipnose como uma metáfora possível para alienação. Assistimos a uma professoral condescendente doutora branca levar o nosso protagonista a um abismo interior paralisante. E, mais tarde, descobrimos que esse método de bloqueio branco sobre as faculdades (de ação e reação) das vítimas negras faz parte de um projeto de controle sobre seus corpos — e consequentemente suas vidas — orquestrado por mentes brancas com o objetivo de por essas carcaças negras em leilão.

Essa analogia pode parecer fantasiosa ou surreal, mas exemplos como O.J. Simpson e Pelé ilustram bem a plausibilidade desse cenário. Diversos são os autores que já discursaram sobre como pessoas negras são encorajadas a adotar uma conduta civilizada. Principalmente se quiserem adentrar círculos de prestígio social, intelectual e/ou econômico. Civilização, assim como boa educação, no caso continuam sendo a metáfora colonial para o disciplinar de tudo que foge dos padrões europeus. Pré-requisitos para se merecer respeito ou provisão da mínima noção de dignidade. Por conta disso o filme é excelente ao nos mostrar o custo psicológico de ter que se provar um corpo negro diferenciado para encarregados brancos. E se revela extraordinário ao nos permitir refletir sobre como mesmo encarnados em corpos negros, mentes brancas podem permanecer incapazes de reconhecer semelhança em corpos melaninados.

“Qual o propósito, Chris?”

Outro ponto de destaque no filme foram os simbolismos: tal como a corça atropelada no início que pode significar inocência; a cabeça do veado macho — cujo termo em inglês (buck) era usado pejorativamente para se referir a homens negros (cabeça dura, impetuoso etc.) — ser o instrumento utilizado para finalizar o sogro que os caça; ou o fato do Chris colher algodão — principal atividade de muitas plantations estadunidenses — no sofá da sala de jogos/tortura para se salvar do fim trágico. Contudo o que me faz recomendar (re)ver o filme são tanto os diálogos com os “criados” de alma branca quanto com os interessados no leilão.

É interessante perceber como pessoas brancas se sentem a vontade para expressar as partes que mais lhe apetecem em pessoas negras. Seja sondar os mitos de primazia sexual; a experiência de vida frente as traumas sociais; a presunção de preparo físico inato; ou até a biologização de uma aptidão artística. A cada nova interação com os convidados da família descobrimos quais fins cada um deles tem para o destino de Chris. A cada aproximação acompanhamos a tentativa dos interessados em descobrir qual vantagem a proximidade com esse ser exótico em exposição pode oferecer.

Toda essa dinâmica se faz nítida na pergunta, destacada acima, do sogro quando sente o ameaçar de seus planos, que por sua vez é respondida na fala de seu pai no televisor quando este diz: “com seus dons naturais e nossa determinação ambos podemos fazer parte de algo maior”. Nela fica nítido o lugar do qual pessoas brancas se auto incumbiram e que ainda não abriram mão: o de ditar que curso vidas negras devem seguir. Tudo, claro, com a melhor das intenções para todos os envolvidos. Pois, como sabemos, o altruísmo para com os povos não-brancos foi o propósito que legitimou os navios tumbeiros. Tendo sido apoiada, inclusive, tanto pela ciência quanto pela religião euro-descendentes.

Por fim, não poderia deixar de ressaltar que o que salva o dia é a constante suspeita do melhor amigo negro Rod com a presunção de inocência. E também como Chris, como qualquer pessoa negra em Diáspora, só faz o necessário para sobreviver. O filme poderia ter encerrado com uma cena de vingança, mas em sua fuga final Chris poupa duas personagens que o queriam (semi-)morto. No desfecho nos deparamos que a humanidade que ele demonstra reconhecer nos antagonistas brancos quase lhe custou a vida apesar de toda aparência de reciprocidade inicial. Isso porque aqueles que há muito cultivam o privilégio de ver apenas o nosso valor de uso quase nunca estão preparados para conceder apreço às nossas vidas e às infinitas possibilidades quando estas escapam aos seus desejos e projetos. É quase impossível (para uma pessoa negra) findar a exibição sem questionar que tipo de concessões fez em sua consciência — ou ainda faz — para ser aceito em círculos de convivência onde se é sempre a cota.

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