Cortejo da Piedade

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
4 min readMay 25, 2021
Ilustração: Lisimba Dafari

“Minha mente jovem e ambiciosa conduziu-me a voos de grande imaginação. Eu vi, então, diante de mim, homens, assim como vejo agora, um novo mundo de homens Pretos, não peões, servos, cães e escravos, mas uma nação de homens robustos deixando sua marca na civilização e fazendo alvorecer uma nova luz sobre a raça humana.”

“Eu repito que Deus os criou senhores de seu próprio destino, senhores de sua própria sorte, e vocês não podem pagar tributo maior ao seu Senhor Divino do que funcionar como homem, como Ele os criou.”

Nada mais distante dessas imagens que Garvey lançou cerca de 100 anos atrás do que essas marolas para sensibilizar branc’o. A nova, que um monte de marmanjo e marmanja anda vestindo, é o “imagina a dor, advinha a cor.” É a atualização dessa posição de um homem fraco, de uma mulher fraca, que imploram por simpatia, por tolerância, por cuidado ao seu eterno agressor. Vão mais de 2000 anos de agressão sem intervalo, vão mais de 2000 anos que essa imagem cola aos Pretos.

“Imagina a dor, advinha a cor” são variações do mesmo tema da piedade, da dependência, da impotência. É a posição do irresponsável, que precisa ser tutelado. É lição já dada que a vala é o destino dos grupos que entregam à mão de outros a sua própria sorte. Cedo ou tarde, um grupo que assim procede perecerá, já nos foi dito de diversas formas. Muitas vezes nem resta quem conte a história, pois há ainda a vala da história. Mas os Pretos, coletivamente, aderiram a essa imagem infantilizante, sem vergonha. Há ainda percepção de mérito, valor nessa figura do bom crioulo apequenado, chorão.

Quando figuras, personalidades como Garvey são descartadas como expressão de um radicalismo sem propósito, o que fica evidente, para além do medo dos inimigos do povo Preto, é o medo dos próprios Pretos, que não é o medo do radicalismo. É, antes, o medo de nos olhar espelho, de encarar honestamente a nossa condição e, daí, dar o nome certo aos bois, aos porcos e às piranhas. O medo de dizer para nós mesmos que esses que nos tomaram há milênios por inimigo são, logicamente, nossos inimigos. Vestidos de lobo ou de raposa, são, logicamente, inimigos.

É o medo das consequências desse sol que não topou se esconder atrás da nossa peneira. Já que, nisso, ele escancara a nossa posição de fraqueza diante da ação a tomar ou negligenciar, e o que isso diz sobre quem nos tornamos. Isso dá medo. Essa posição de decisão e sacrifício que toda escolha demanda faz muitos de nós, treinados a correr das responsas e se esconder atrás dos erros, querer correr do problema e da imagem refletida.

No reflexo, o espelho projeta a imagem de homem/mulher de coluna ereta de que fala Garvey e dos sacrifícios, em tempo, suor e sangue, que a postura exige e que não queremos bancar. Do outro, temos a imagem do covarde, aquele que, pelo menos intimamente, já tendo dito a si o mesmo o que é preciso fazer, se faz incapaz de se mover em direção condizente. No terror da encruzilhada (esse termo tá na moda falar, mas, de novo, só por falar mesmo, no pique de cortejar simpatias) a imagem que seduz o nosso povo — afinal ninguém fica bem na posição do covarde — é essa aí do penitente, do injustiçado, do clemente. Se isso tudo remete à imagem do Cristo na cruz, não é por acaso.

Essa imagem deprimente de um sujeito apequenado e “apaixonado” pela própria destruição e pela injustiça de que é vítima (é ‘paixão de cristo’, o nome da cena, não é?) é vista por muitos de nós como bela, como reflexo de uma moral superior. Já colaram meninos Pretos e travesti na mesma na cruz. Até no sambódromo correu esse cortejo da piedade. Nesse pique de sequestro espiritual, em culto à fraqueza, segue o gado negro, orgulhoso, rumo ao eterno calvário. Esse horror se faz bonito aos olhos dos Pretos, que suplicam por piedade. É dessa seara que saem as variações de súplicas: “parem de nos matar”, “vidas pretas importam”, “tolerem a nossa religião”, e, agora, “imagina a dor, advinha a cor”.

Não à toa são tantas as vozes em que eles colaram a imagem de “radicais” a insistir sobre a importância de o povo Preto resgatar o respeito próprio. E respeito próprio, como nos lembra Frances Cress, compreende o respeito por si mesmo, no íntimo e pessoalmente, e o respeito pela coletividade (Preta). Não existe um sem o outro. Garvey foi outro que, muito antes, tanto martelou sobre a necessidade de desenvolver a confiança em si mesmo e no seu grupo racial para quem deseja, de fato, sair da vala. É doido, penso eu, que falar nesses termos seja visto como radical. Pensa só, diz aí. Confiança e respeito individuais e coletivos sejam coisa de radical e, em consequência, coisa perigosa, feia e intolerante.

O perigo em não jogar o jogo é real, não se pode negar, mas é mesmo feio, intolerante? Existe aí um jogo de inversão em que a “alternativa” ao radical, ensinada tanto por uma militância Preta, sem vergonha, financiada pelos agressores branc’os, e veiculada pelos Pretos doutrinados nas instituições culturais, religiosas, políticas, educacionais, econômicas, midiáticas branc’as, é o caminho da colaboração na morte contínua do seu povo. Ela vem pela bala, pelo cárcere, pela boca, como vem pelo embranquecimento, essa forma de morrer, aplaudindo a própria morte.

“Se vocês não podem fazer o que outros homens fizeram, o que outras nações fizeram, o que outras raças fizeram, então é melhor vocês morram!”, faz cerca de cem anos que Garvey deu esse papo. E se a escolha for essa fita aí de desresponsabilização e da sensibilização dos agressores, na base do completo desrespeito, sejam ao menos honestos em dizer, a gente combinamos foi de morrer mesmo, e da forma mais desonrosa possível.

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