Crônicas do chapéu: economia política dos símbolos

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
5 min readMar 8, 2021

Foi lendo uma reflexão do mais velho em uma postagem no Facebook que lembrei desse outro “caso do chapéu” de lá do outro lado do Atlântico, da nossa Terra-Mãe.

Em quatro parágrafos, Seu Spírito Santo nos conta uma história de passagem de chapéu de cabeças pretas para cabeças brancas, à força, na medida da pretensão descabida, do desdém antiafricano —misturada com uma profunda inveja do gênio Afrikano , essa fonte inesgotável de criação do seu povo — e na medida da apetite voraz por constituir seus nomes por cima do brilho e pela rasura do nome de grandes Mestres Pretos, como Pixinguinha e João da Bahiana.

A reflexão é ilustrada por uma imagem sugestiva dessa violência simbólica de tomada, na mão grande, do chapéu de grandes pretos por brancos menores, muito celebrados na música e nas artes ditas populares brasileiras e cultuados nos círculos intelectuais brancos autoproclamados progressistas.

Ilustração: Izaias Oliveira

Essa imagem e a reflexão desse outro Mestre Preto que narra essa ‘crônica do chapéu’ me fez lembrar de mais uma ‘crônica do chapéu’ que marcou as lutas políticas mais significativas, do ponto de vista histórico anticolonial, de Afrikanos no Malawi contra os invasores britânicos no século vinte.

A documentação colonial a que um historiador britânico teve acesso dá conta de que os levantes organizados por Chilembwe tiveram, para muitos, a inesperada adesão de alguns poucos Afrikanos que, já havendo galgado para si a condição de livres, de proprietários e de educados no sistema colonial de ensino, foram motivados pelo que ficou conhecido como “caso do chapéu”.

Ocorreu a esse grupo ínfimo de Afrikanos “de elite” em um Malawi ainda colônia britânica que, sempre que circulavam por Blantyre, à época como hoje ainda capital econômica e financeira do país, os invasores brancos os hostilizavam e, muitas vezes, obrigando-os a tirar o chapéu. Era uma forma de impor, na violência, limites à tentativa do Afrikano de se pretender homem branco na sociedade do homem e da mulher brancos. Quer dizer, tratava-se de delimitar até onde Afrikanos livres, em contexto de colonização e escravização, poderiam emular os brancos na reprodução do seu código cultural. Era preciso delimitar até onde um corpo preto poderia performar o que significa ser gente, ser humano, a partir do roteiro definido pelos brancos.

Nos registros coloniais, alguns desses homens Pretos livres, educados e proprietários contam às autoridades coloniais britânicas, nos seus depoimentos colhidos seguidamente às revoltas e rebeliões, que andar por Blantyre com um chapéu era querer guerra com os europeus. Vale lembrar que esses europeus que agrediam verbal e fisicamente homens Pretos vestidos à moda europeia, portando chapéus jamais vistos naquele território até a chegada dos invasores europeus, eram os mesmos que alegavam estar promovendo o fim progressivo da escravização.

“Tira o chapéu!, e se você não tirasse o chapéu, eles partiam para cima de você”, conta John Gray Kufa, Afrikano que aderiu aos levantes de Chilembwe, conforme depoimento reproduzido no livro editado por um branco africanista britânico de sobrenome McCraken, ou algo assim. Junto a Kufa, havia alguns outros, como Njilima, que justificaram sua adesão ao movimento revolucionário liderado por Chilembwe, na base do ataque à honra que teriam sofrido nessas ocasiões em que teriam sido obrigados a tirar o chapéu em espaços públicos em Blantyre.

John G. Kufa em 1910, por M. Chisuse

Se, no primeiro conto, o chapéu é o símbolo de uma apropriação indébita e marcada pelo imenso desrespeito por quem, como Tom Jobim, não tardou para cuspir sobre o prato em que comeu até se fartar, insultando a memória e honra de quem se fez seu professor, na generosidade, insultando sua cultura e o povo no seio de quem ela emanou, aqui, no Malawi, o chapéu se reveste de todo um outro significado. Torna-se símbolo daquela miragem de humanidade e dignidade com que os brancos mantêm os pretos alinhados, amansados, ocupados e embalados em um sonho de uma integração que se faz servidão perene. Servidão que se dá de forma às vezes direta, às vezes mediada, às vezes implícita, outras vezes, completamente explícita, de uma forma ou de outra segue segundo os caprichos, os interesses, as circunstâncias e os limites projetados por sinhôs e pelas sinhás da ordem do dia. É produção e distribuição da ilusão doentia que muitos e muitas de nós imaginar, enxergar a possibilidade de se fazer pessoa íntegra pela métrica de quem nos esquartejou em pedaços — objetiva e subjetivamente.

Se o chapéu como motivo alegado por esses homens para se aliar a Chilembwe, que já vinha de alguns anos de construção de um trabalho comunitário em certa medida independente antes dos levantes, pode suar umbiguista, egoísta, é preciso, porém, lembrar que, quando a sirene soou e o tempo do fogo chegou, Kufa, Njilima e os outros poucos homens Pretos atenderam ao chamado e seguiram para o fronte.

Já quando olhamos para os vários grupos ínfimos, na Diáspora como no Continente, dos Pretos em condição econômica mais confortável, o que mais vemos é a aquela atitude típica que Malcolm X retratou pra nós na sua autobiografia. Aquele espírito pequeno e torto que ele tanto gastou na base do deboche e do papo reto.

“Sabe como chamam um preto Ph.D.? Chamam de “nigger” (crioulo)!”, dizia Malcom X para os iludidos e apaixonados pela cidade branca. Diferente desses homens Pretos do Malawi que guardaram no espírito um certo grau de respeito próprio e honra, esses outros, em maior número, os têm na sola do pé, fazendo-se orgulhosos promoters —ponta de lança — da máquina de moer carne, espírito e terra Pretos.

As duas crônicas do chapéu que elenquei nesse texto chamam atenção para lógicas comuns que unem supremacismos brancos de diferentes matrizes: um britânico em solo Afrikano e outro lusotropical em terras americanas. O debate sobre apropriações culturais em contextos racistas mundo afora vem, não é de hoje — se engana quem acredita que esse é um debate atual — sendo esvaziado pela esquerda e pela direita. Apelam ao conceito de cultura e aos seus textos antropológicos com o propósito de desviar o foco da discussão e encerrar o debate.

Como as tomadas dos chapéus em cada crônica ilustram, essa discussão nem está assentada na antropologia constituída na academia que aí está, mas antes na política. É uma dinâmica política. Veja bem, o que os chapéus desenham para nós é uma economia política dos símbolos e da construção de memória regulada pelo racismo. Nessa seara, o supremacismo branco sustenta a colonização do imaginário via apropriações materiais e imateriais com a distribuição dos custos e dos dividendos dessas apropriações pela linha de cor.

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