Crowthers, Almeidas e Manéis: Tradutores-traidores

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
Published in
4 min readJun 25, 2021

Refletindo sobre as tentativas das marionetes de pele preta de pôr figuras como Malcolm X no bolso da esquerda, de introduzi-lo, de qualquer maneira, no seu portefólio, acabei indo parar em Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí. Fui até sua reflexão sobre os problemas da tradução em contexto de colonização.

Numa passagem em que analisa as incompatibilidades entre teorias ocidentais e sujeitos Afrikanos, a mestra iorubana chama atenção para o papel da tradução (forçada) da língua Yorùbá, uma língua sem gênero, para o inglês, uma língua, bastante generizada — o que é um dos fundamentos culturais do ocidente. O gênero foi e é essencial à hegemonia cultural euroamericana e à infraestrutura supremacista branc’a.

Termos como ọba, ọmọ, ọkọ, ìyàwó, ọmọyá, entre outros, não possuíam uma marca (anatômica) de gênero. E a tradução desses termos na reescrita da história iorubana, em termos de rei, filho, marido, esposa, na língua estrangeira, foi fundamental para inscrever a história iorubana na ordem (no texto) supremacista ocidental, branc’a. A instituição do gênero — como maneira de ver e dispor corpos em hierarquias sociais — pela via da tradução, diz a mestra iorubana, é uma forma de patriarcalizar culturas e histórias Afrikanas. Essa tradução, com a introdução do gênero, foi uma forma de rescrever a história Afrikana, traindo seus termos, sequestrando os fundamentos culturais.

Nessas passagens, a mestra iorubana está mirando, principalmente, os Afrikanos que, da academia, colaboraram para esse processo, ao não considerar essas “traições” (o termo é meu e não dela) feitas nesses processos de tradução. Daí porque o exercício de tradução é extremamente perigoso, precário, fantástico e, absolutamente, político. Eles sabem disso, desde os gregos, desde Aristóteles, com as distorções e sequestro que fez do legado do Antigo Egito.

Deixando de lado as traduções linguísticas para considerar as traduções de agendas e legados políticos, a reflexão da mestra ajuda a entender o sequestro do legado político autonomista Preto, que vem sendo feito por Silvio Almeida e Jones Manoel, sob encomenda das editoras do gado acanhado. A gente compreende como o pensamento de alguém como Malcolm X, construído em uma trajetória que passa por uma família comprometida com a agenda política pela autonomia Preta, família, essa, que foi destruída pelo supremacismo branco, passando pelas instituições pela inviabilidade do homem preto (conselho tutelar, judiciário, polícia, mercado de trabalho), pela sobrevida nas ruas, por instituições pretas autônomas, pela traição dos membros da NOI, como essa trajetória possa ser lida e reescrita de modo compatível com um programa tão distante como o da esquerda/direita. Como um gigante desse pode ser reduzido ao campo de visão de uma meia dúzia de autores europeus, que, sozinhos, mal são capazes de limpar a própria bunda.

A traição via tradução é uma forma de dar continuidade à colonização, com os pés e mãos de agentes pretos. Trata-se de sovietizar culturas e histórias de matrizes culturais tão distantes. Daí segue a imposição de categorias de proletariado, classes trabalhadoras, burguesia, camponês, brecha camponesa, revolução, em um quadro referencial soviético, eurasiático, de modo a distorcer a interpretação da história dos povos pretos e vermelhos. O sequestro dos termos é um passo necessário para ditar a direção política cultural.

Numa série de patacoadas que desconsideram o contexto das falas de Malcolm e o cerco fechado que se monta sobre sua figura política, Manoel, um sujeito que não teria os meios de sobreviver à metade da descida ao inferno que fez Malcolm, se presta a infantilizar o pensamento de Malcolm X, como acadêmicos branc’os fazem diariamente na academia. “Malcolm, quando morreu, estava a um passo de chegar ao Marxismo-leninismo”, diz Jones. É como se dissesse, quase chegou à maturidade do pensamento político, mas morreu antes. Que pena. Jones também reserva a Malcolm o lugar de “revolucionário particularmente negro”, para, na sequência, afirmar, pretendendo arrastar Malcolm X junto, uma universalidade de marca ocidental, branca. É como dizer, o particular (inferior, curto, ensimesmado) é negro, o universal (superior, abrangente, humanista), o branco. Conhecemos essa fórmula racista e suas variações.

É de uma falta de respeito com a memória de Malcolm, de Garvey, do pan-Afrikanismo; e, antes mesmo disso, é um desrespeito profundo à memória dos milhões de Afrikanos que mesmo em condição de sequestro, violências sem limites, destituídos de humanidade, não falharam em nos deixar um legado cultural, político, filosófico, econômico, comunitário, civilizacional, nos erros, nos acertos, articulações e linguagens acessíveis no seu tempo.

O que Manoel e Sílvio estão fazendo é se prestar ao serviço de fechar o acesso a esse legado de autodeterminação e autonomia do Povo Preto e, assim, encaminhar o Povo Preto pela porta dos fundos das instituições supremacistas branc’as. Fazem isso pela via da traição e do sequestro do legado político Preto.

Crowther em 1867 / Wikipedia

Este, na foto, é Samuel Crowther, iorubano, liberto da escravização pelos ingleses no início do século dezenove, convertido ao cristinianismo, quando, então, adotou um nome britânico de Samuel, abandonando seu nome iorubano Ajayi. Retornando da inglaterra ao continente Afrikano, na condição de bispo anglicano, Samuel foi o responsável por traduzir a bíblia para o Yorùbá e escrever as primeiras gramáticas Yorùbá e Igbo na língua inglesa. A cristianização dos povos Afrikanos, com o consequente abandono da tradição e das memórias Afrikanas avançou bastante, com a colaboração de Samuel Crowther.

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