Da nossa “cultura do aperfeiçoamento”

Lisimba Dafari
revistaokoto
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8 min readMar 29, 2021

O círculo, em muitas culturas, é tido como um símbolo de perfeição. Como alguém que trabalha com design, entendo completamente o fascínio que o desenho de uma esfera regular provoca. Até hoje observo com imensa admiração aquelas pessoas capazes de desenhar um círculo “perfeito” na mão grande — sem ajuda de compasso, barbante/corda, moeda, tampa, (tecla) shift ou o que valha. No entanto, por vezes percebo que muitas pessoas associam divindade/naturalidade a um símbolo tão humano/artificial quanto um quadrado, o acento circunflexo ou um anzol. E é essa dificuldade de perceber o círculo/a perfeição como um horizonte e não como uma linha de chegada que me leva a escrever hoje.

Ilustração: Lisimba Dafari

“Ninguém é perfeito”

Na nossa escola é muito conhecido um itan que nos conta sobre algumas viagens de Oxaguiã ao reino de Ogun. Numa dessas visitas em busca de provisões, Oxaguiã encontrou o povo do reino muito satisfeito com o palácio que acabara de construir em oferecimento ao seu rei. Admirado com a construção, Oxaguiã perguntou o que os súditos pretendiam fazer enquanto seu rei não chegava. “Descansaremos”, ouviu como resposta. Eis que Oxaguiã, desembainhou sua espada e empurrou um muro do castelo que desmoronou todo. “Já que seu rei deve demorar, aproveitem esse tempo para construir um castelo ainda mais digno de Ogun”, Oxaguiã lhes disse enquanto retomava seu rumo ao campo de batalha. Numa segunda visita, o orixá jovem e guerreiro se deparou com uma construção ainda maior e mais bonita que a primeira. Todavia, mais uma vez sacou sua arma e fez ruir tudo com o toque de sua espada. “Aproveitem melhor esse tempo que a guerra ainda exige de seu rei e construam um castelo ainda melhor”, Oxaguiã recomendou ao povo que mais uma vez planejava descansar até que seu rei retornasse. Passado um tempo, uma nova busca por provisões, um novo e mais suntuoso castelo e outro golpe de espada. Tantas vezes isso aconteceu que o povo daquele reino passou a ser conhecido por suas grandiosas construções, assim como por seus exímios construtores, seus magníficos engenheiros e sua esplêndida arquitetura.

Apesar de servir para ilustrar diversas características da cosmovisão iorubá — recorrente entre muitos outros povos africanos –, começo a explanação por esse itan por sua descrição de como nada é bom o suficiente que não possa ser melhorado. Ou seja, nada é tão “perfeito” que não possa ser beneficiado pela prática, experiência e sabedoria das pessoas dispostas a aperfeiçoar. A ideia de que nada é tão bem feito que não possa ser desfeito e refeito nos oferece tanto uma metáfora sobre os altos e baixos da vida, como reforça a nossa compreensão de que o melhor está sempre por vir/fazer. Basta seguir o baile, independente dos desníveis pelo caminho. Esse itan nos oferece uma perspectiva sobre a “perfeição” não como algo a ser alcançado, mas, sim, eternamente perseguido. Pois, enquanto o melhor — e o pior — sempre tem um referencial anterior, o “perfeito” simplesmente é, sempre foi e sempre será. Como uma sentença perpétua que nos destina a uma visão limitada e limitante do mundo.

“Errar é humano”

Apesar de toda intromissão do sincretismo sobre os cultos ancestrais africanos, até a mais desavisada das almas não tem dificuldade em reconhecer que, de “santo”, os orixás/vondunsis/nkisis/… não têm nada. Pelo contrário, quem manja mais dos paranauê sabe que, inclusive, alguns deles transcenderam esse plano da existência justamente pelo “erro”, pela transgressão/superação de limites — morais, físicos, espirituais dentre outros tantos possíveis. Uma diferença de perspectivas que se explica ao analisarmos os desdobramentos do mito de Narciso cultura ocidental/branca/europeia. Falo em narcisismo não somente pelo histórico de terem se colocado na posição de única civilização civilizada capaz de “civilizar” todos os demais povos — mesmo que através de genocídio, escravização, saques, estupros e outras barbáries — , mas pela persistente crença de que o ser humano, ainda que indiscutivelmente falho, seja capaz de chegar a perfeição, sobretudo em teoria. Os dogmas religiosos e os cânones do saber acadêmico tão aí pra não me deixar mentir! A noção de verdade no ocidente, consistentemente, adquire a pretensão de absoluta/única/universal. Não importa quantas mea culpas, atualizações ou recortes tenham sido necessários para garantir sua sobrevida: uma vez aceita e difundida como Verdade, as concepções/idealizações/abstrações europeias se colocam acima de tudo que veio antes, do que virá depois e demoniza tudo que não espelhe sua “magnitude”. Aquele pique “aceite ou pereça” tão recorrente na história do Ocidente.

Caso não tenha ficado nítido, não deveria surpreender a constatação de que uma cultura enraizada na crença de um ser supremo único se reflita num povo que não apenas invalida maneiras outras de existir no mundo como, também, se embriaga num sentimento de superioridade diante até do que ignora, desconhece ou despreza. Aquele ditado: passarinho cismado com perfeição desenvolve delírios de grandeza. Nem parece que a lenda de Narciso não revela o perigo em enxergar virtudes somente no próprio reflexo. Nem parece que rola até um fim trágico para o amaldiçoado príncipe incapaz de conceber a existência de qualidades alheias a si pra arrematar a moral da história. Porra nenhuma! Séculos dedicados à perseguição de tudo que contraria ou oferece alternativa. Séculos de padronização de modos de pensar, agir, sentir e perceber o mundo por encarar como horror tudo que não lhe reflita. No entanto, a maior tragédia, nisso de se acreditar acima da crítica e do desacerto, fica por conta de toda dor, morte e destruição cultivadas mundo afora em nome dessa míope “supremacia”. Hoje em dia pode até ser ridículo pensar que os colonizadores imaginavam sua invasão parasitária como manifestação da vontade divina que os teria (auto)incumbido das rédeas do planeta. No entanto, qualquer graça logo se perde quando reparamos que a percepção da gravidade nesse “lapso de julgamento” não foi capaz de gerar nenhum compromisso com reparação ou sentimento de responsabilidade. Na realidade, a soberba colonial é tão persistente que, o próprio gesto de assumir o equívoco de sua antiga postura é mais usado como testemunho da superior humildade dos descendentes da casa grande que como prova da humanidade compartilhada com os colonizados.

“O inferno são os outros”

Através da capoeira a gente aprende que a rasteira, como a crítica, nos oferece uma sinalização do que temos para desenvolver em nós mesmos para não mais abrir brechas para nossa própria derrubada. Dessa forma, sempre que catamos coquinho ou, até mesmo, nos espatifamos no chão no jogo da capoeira, nos deparamos com a chance de reavaliarmos o nosso próprio jogo, uma vez que só temos controle sobre o nosso próprio jogar. Isso é, caso decidamos continuar aperfeiçoando o nosso jogo ao invés de nos deixar petrificar pela possibilidade de nos embananar novamente. Ou seja, a capoeira, como o itan do início nos ensina como o tropeço e a queda fazem parte do processo de continuar sempre seguindo adiante. Dar de cara na poeira, sob esse prisma, nos leva a lidar com os apontamentos de terceiros não como inaceitável ameaça, mas como consultoria — intencional ou não. Dar com os burros n’água na interação com o outro se transforma, então, num convite para autocrítica, para se rever a partir de um outro ponto de vista. Isso é, pra quem realmente aprendeu a lidar com o desconforto de silenciar o próprio umbigo. O que em nada significa que seja um processo rápido/fácil, ou que esse outro tenha sempre razão, mas que nos permite aprender com nossos B.O.’s ao invés de ficar nessa de simular um ideal desumanizador de perfeição no qual nunca caberemos plenamente.

Se tem uma coisa que gostaria que ficasse evidente a partir desta leitura, é como o conceito de “perfeição” pregado pelo ocidente tem, como efeito, muito mais um instrumento de controle/paralisia/adestramento do que uma máxima teológica, pois, a partir do momento em que aceitamos o fato de que somos todos imperfeitos, não deveria ser tão complicado compreender que nada que produzimos tem valor absoluto. Por mais inspirados pelo Divino que possamos realmente estar, permanecemos limitados às nossas percepções e concepções. Logo, se realmente há disposição em avançarmos na caminhada, temos que ter em mente que para alcançarmos certas distâncias teremos que deixar algo para trás. Teremos que abrir mão de traços maiores ou menos até de nós mesmos. Se realmente desejamos ir além dos caminhos já percorridos até aqui, temos que avaliar bem em quais descaminhos não devemos mais insistir. Uma ótima ilustração disso é a mais-que-repetida história sobre o alisar de cabelos de nossas (bis)avós, que tanto sustento garantiu às nossas famílias no pós-abolição. Por mais úteis que tenham sido para garantir o pão de cada dia em “casa de família”, o compromisso de combate ao racismo nos exige que jamais confundamos tal imposição racista como modelo de superação/inclusão. Ainda que isso saia salgado no curto e médio prazo, principalmente quando não reunimos esforços coletivos de resistência. Em algum momento teremos que lidar com a realidade de que ser nós mesmos nesse mundo estruturado pelo racismo nos exige repensar tudo que nos foi ensinado como bom, bonito e triunfante.

“Só Deus/a Natureza é perfeita”

Se por um lado ainda nos falta a compreensão de que o nosso entendimento do divino decorre de tudo e todos que já fomos coletivamente, também nos falta admitir que por mais perfeitos que entendamos a origem da nossa existência, até mesmo Deus/a Natureza produziu os seres imperfeitos que reconhecidamente somos. Sendo assim, mais vale o compromisso de nos tornarmos cada vez a melhor versão de nós mesmos — segundo nossos próprias conclusões e propósitos comunitários — do que perseguirmos o nosso próprio rabo atrás de uma ideia de perfeição singular totalmente irreal e arbitrária. Se observarmos bem a diversidade que nos cerca, veremos que por mais perfeita que consideramos ser a Criação, ela não segue padrões regulares. O que certamente nos livra do tédio e da obviedade e também deveria servir de inspiração para extrapolarmos fórmulas únicas que contrariam toda a pluralidade que nos permitiu existir, confabular e prosseguir.

Por fim, gostaria de ressaltar que por mais hippie que possa soar toda essa conclusão acima — até porque toda alternativa aos padrões de perfeição brancos tende a parecer alienígena/risível/demoníaca para os iniciados nesse culto umbiguista — , o importante é sacarmos que, como sugere a ideia do círculo, nem tudo tem um início ou um fim muito precisos e que a própria ideia de que a história/humanidade segue um rumo linear rumo ao progresso é fruto das argumentações que visaram justificar a nossa desumanização. O círculo, como os castelos do reino de Ogun servem para nos ensinar que a busca por aperfeiçoamento exige movimento/prática constante. Sendo assim, o importante é agirmos em coerência com o fato de que não é porque ruíram as nossas civilizações que estamos fadados a entrar em conformidade com o projeto colonial. Sempre podemos (re)construir os nossos castelos. Nunca será tarde demais para darmos uma virada nesse ciclo de subjugação e darmos continuidade ao ciclo interrompido de nossos ancestrais. Basta ousarmos acreditar que o por vir depende dos nossos corres de agora. O primeiro passo, considero, é tirarmos do passado os dribles necessários para chegarmos cada vez mais longe no futuro/passado. Podemos nunca nos prepararmos o suficiente para encarar o que nos espera, mas depois de tantos séculos, já deveríamos ter como obrigação, ao menos, não mais tropeçar nas mesmas cascas de banana que tombaram tantos de nossos mais velhos. A maior delas sendo essa espera por uma mudança de postura do colonizador quando nós mesmos sequer esboçamos abandonar os vícios da colonização, tal como essa cisma com esse perfeito beco sem saída quando nossos ancestrais nos legaram horizontes tão mais amplos e dignos.

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