Da Vantagem de Ser Bixa Preta

Dessalín Òkòtó
revistaokoto
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16 min readAug 31, 2021

1. — Fazendo a Chuca —

Para introduzir o assunto, deixa eu fazer duas distinções básicas. Em primeiro lugar, eu uso “vantagem” ao invés de “privilégio” pois não há como as pessoas negras serem privilegiadas por nada cuja origem é o racismo. Ser rico, escolarizado ou famoso não é um privilégio pois nada disso dá poder para nós no sistema racista. Só nos torna mais uma peça de manutenção na máquina branca de moer pretos. Ter vantagem é ter benefício individual às custas do prejuízo coletivo. Privilégio, assim como autonomia e liberdade, é um bem coletivo. E um indivíduo preto jamais será privilegiado em um mundo racista. A outra distinção é sobre “bixa preta” e “homem negro”. Eu tô ligado que “bixa preta” é um gênero de masculinidade negra e o mais adequado seria usar “homem hétero” ou “Homem hétero negro” ou ainda “hétero negro”. Mas pra encurtar papo, eu uso “homem negro” como sinônimo de “homem negro heterossexual” e “bixa preta” para “homem negro homossexual” ou sua variação de “homem negro não-heterossexual”. É só uma convenção de termos pra cá.

“Galen 2”, 2014 (Jordan Casteel)

Além disso, vou reforçar aqui que nossa linha de raciocínio é sempre se pautar pela margem da questão. A razão para isso é que, se quem está mais marginalizado ganha, todos que estão mais assimilados, e portanto ao centro, ganham. E quem tá mais à margem nessa sociedade racista? Quem é visto como o inimigo número um por quem está no poder e domina todo o restante? Quem está encabeçando absolutamente todas as taxas de violência na qual está implicado? É o homem negro.

Vestida a capa, vamos à introdução do assunto.

Como eu e outros já demonstraram, ninguém dentre a comunidade negra sofre com mais força e violência as opressões do racismo do que o homem negro. A mulher negra não está na base da pirâmide nem é a mais marginalizada pelo racismo. Isso faz com que ela não sofra racismo e machismo? Não. Ela sofre com os dois, sim. Mas o fato de ser mulher, “apesar de negra”, não faz com que ela seja aniquilada, como é o caso do homem negro. E pouco importa seu terraplanismo sobre “a base da pirâmide” e a “interseccionalidade”. Cata lá na série “Entendendo o Racismo: o erro da base da pirâmide” pra se informar sobre isso. Aqui, eu estou me utilizando de um fato estrutural, pois pirâmides são estruturas, né isso? O grande privilégio do homem negro nesta sociedade racista e patriarcal, justamente por ela ser racista e patriarcal, é encabeçar as taxas de homicídio, trabalhos insalubres, analfabetismo, orfandade, internação hospitalar, desaparecimento, abuso sexual, suicídio e por aí vai. Só não lideramos a taxa de violência obstétrica e feminicídio pois o homem negro é… homem.

Daí que, se a gente entende que ser um homem negro significa estar na linha de frente do genocídio, basta ser qualquer coisa que não prioritariamente um homem negro parar tirar a gente da linha de frente do genocídio. A metáfora é como se fosse um rebanho pro abate, mesmo, negada. Pois o povo preto é visto como gado pro serviço ou abate. E o que significa “fugir do homem negro”, em termos raciais? É fugir de todas aqueles estigmas animalizantes que recaem sobre ele: o violento, o irracional, o burro, o cavaludo, o que abandona as cria, o que não ama, o bruto, o que é melhor pra trabalho braçal, o que só entende a base da porrada, o que pode sofrer todo tipo de violação sexual sem reclamar, o que serve pra resolver nossos caôs e pegar de pau nossos desafetos — inda mais se vier de uma mulher — e por aí vai. Todas as outras pessoas negras compartilham desse estigma. Infelizmente, a tentativa de agregar as identidades de ‘bixa’, ‘mulher’, ‘intelectual’, ‘religioso’, ‘militar’, ‘político’, etc-e-tal negros; fazem com que a gente se distancie desses estigmas que “derivam” do homem negro. Essas identidades nos aproximam da “branquitude” e, com isso, nos permitem escapar do ônus marginalizante de ‘ser negro’. Isso eu já expliquei melhor lá no “Homem Negro: Moléstia da Raça” (Revista Òkòtó). Todos os negros vão procurar construir sua subjetividade em cima de uma identidade que seja parcial ou completamente desvinculada desse homem negro monstrificado para não ter que sofrer mais fodidamente com o racismo que incide sobre ele.

Essas identidades que nos distanciam do homem negro e nos servem de passaporte, de salvo conduto para a branquilândia vão ganhar sua legitimidade nesses fast-food teórico de “identitarismo” e “interseccionalidade”. Coisas que, seja na sua faceta feminista, seja na sua faceta queerzeira, geram tanto estrago nas nossas relações de gênero dentro da comunidade negra quanto o machismo e a homofobia. Mas, disso, eu trato na próxima parte desse texto.

"Yahya", 2013 (Jordan Casteel)

2. — Usando PreP —

O racismo faz a proeza de colonizar tanto os brancos como os negros. Como resultado, assim como toda pessoa branca será racista de alguma forma, toda pessoa negra será embranquecida em alguma medida. Negros são embranquecidos na medida que realizam sua humanidade emulando os seus análogos aos brancos. O homem negro tenta realizar sua humanidade quando tenta ser homem “que nem” o homem branco. A mulher negra tenta realizar sua humanidade quando tenta ser mulher “que nem” a mulher branca. Não seria diferente com as outras sexualidades e gêneros entre a nossa comunidade, ora vejam! As bixas pretas, sapata, travestis e não-binárias continuam a emular e tentar realizar suas humanidades construindo uma subjetividade de acordo com os referenciais que as suas análogas brancas ofereceram.

Mas não será só o homem negro que perseguirá a máscara do homem branco, a mulher negra da mulher branca e a bixa preta da white gay. Como isso tudo essa prática ainda cai na armadilha do identitarismo, a gente vai ver isso contagiar tudo na nossa comunidade. Aí a gente vai ver o macumbeiro emulando o cristão, o intelectual negro emulando o acadêmico, o líder negro emulando o político partidário ou sindicalista, a pessoa negra querendo ganhar dignidade emulando um cidadão de bem.

No caso específico das bixas pretas, a estratégia de ser um recorte de raça em meio a uma causa/movimento/pauta de gênero funciona tão bem que ela vai preferir colar com as LGBTQI+ para lutar contra a heteronormatividade do que com a comunidade negra para lutar contra o racismo. Mesmo as bixas pretas que dizem não fechar com as brancas nos rolês e relações delas, ainda reproduzem todas as toxidades que o modelo de sexualidades não-héteras tem sobre a comunidade negra. Afinal, ora vejam só, LGBTQi+ não são fadas alvas e puras livres do racismo e do patriarcado europoide.

As white gay-queerzeira-pós-masculinas lidam com as suas próprias masculinidades como algo ruim, tóxico e doentio. As bixas pretas, em sua maioria acabam reproduzindo essa mentalidade, querendo que toda forma de masculinidade do cis-hétero negro nelas seja morto a qualquer custo, com todo tipo de macumba ou encantaria pós-sexual. Os traços da agressividade nelas serão execrados. Os traços da impetuosidade nelas serão execrados. Os traços do rigor nelas serão execrados. Os traços da “força bruta” nelas serão execrados, menos na cama .

Por outro lado — e se queremos ter uma conversa séria e sincera em comunidade, a gente precisa ter tranquilidade pra botar o dedo nas nossas próprias feridas — assim como as white gay, as bixas pretas vão reproduzir toda forma de hipersexualização ao homem negro enquanto objeto de desejo. O que não vale pra si, vale pros outros. E buscam realizar seus desejos justo naqueles que performam suas masculinidades (sendo héteros ou homossexuais) mais próximo do estereótipo de homem negro, jovem, viril e pirocudo. Se tiver pinta de bandido, favelado, peão de roça ou mendigo, então! É o cafuçu. É o mavambo. É o faixa preta. E é aí que a coisa fica feia pra geral, né. Pois o homem negro vira o bode expiatório da trans-homofobia na boca das bixa preta, das afropoc,das acadêmicas, de bixa preta travesty atriz e cantora, das não-binárias queer pós-sexual. Mas, no fim de semana, tudo o que elas mais desejam é sentar no bode para realizar os seus fetiches e apetites sexuais.

E vocês acham que a gente reproduz esse comportamento a partir de quem? Das white gay! E da onde vem tudo isso? Do complexo de sinhá lasciva. A mulher branca da Casa ao mesmo tempo não se sentia oprimida no esquema patriarcal, mas gozava do esquema racial para descontar suas frustrações nas escravas através de castigos e explorações sexuais. E toda mulher branca nessa nossa sociedade racista, patriarcal e com suas raízes profundas e vazantes na escravatura entre a fragilidade da sinhazinha indefesa e a implacável sinhá lasciva. Da mesma língua que saía a ordem de duros castigos ao nego insolente à luz do dia, saía a ordem de duros falos do nego irresistível à noite. Essa dinâmica se reflete ainda hoje entre as mulheres brancas e as white gay, que se comportam nessa mesma pegada da sinhá. A white bixa reproduz isso sobre o homem negro e sobre a bixa preta. Esta é a origem do racismo entre a comunidade LGBTQi+.

"Jerome", 2014 (Jordan Casteel)

A nosso turno, como ainda buscamos realizar nossas humanidades segundo as armadilhas da identidade de gênero fundada na sexualidade — a gente ainda se centra onde a gente senta –, terminamos por reproduzir sobre os homens negros e as masculinidades negras em geral as expectativa hiperssexuais e animalescas que os brancos têm sobre nós. No fim das contas, da mesma forma que um homem negro que tenta realizar sua humanidade buscando ser que nem um homem branco, uma bixa preta jamais conseguirá realizar sua humanidade buscando ser uma white gay do tipo preta, pois ambos estão se pautando por seu gênero ou sexualidade, e não por sua raça. Quaisquer que sejam as masculinidades negras, elas são estruturadas fundamentalmente em raça.

Por reproduzir toda forma de racismo contra a nossa própria comunidade que qualquer forma de se compreender negrx em termos de identidade que tratar nossas tensões por meio da interseccionalidade se torna um grande equívoco. O maior erro ao colocar gênero antes de raça é que a gente se engana sobre a qualidade das opressões que sofremos. No caso das bixas pretas, a gente acredita que sofre violência de gênero e sexualidade, prioritariamente, quando na verdade é por conta da raça.

E basta a gente se desvincular do recorte de gênero e se observar pelo quadro geral da nossa comunidade pra perceber isso. Quem mais apanha e morre por homofobia e transfobia são negrxs; quem mais morre e é violentada é a mulher negra quem mais está desempregado mesmo que tenha diploma superior são os negros; quem mais morre entre os ambientalistas são os índios e os negros; quem mais está na rua, se suicida, está encarcerado e morre na mão da polícia são os homens negros; quem é da esquerda e está morrendo com o tal “fascismo da extrema-direita” são os negros. Tudo o que é deles e estamos implicados, somos os que mais morremos, apanhamos e somos marginalizados.

A gente morre prioritariamente por ser negro. Mas com requintes de homofobia, machismo, classismo, fascismo, etc. Do contrário, tinha era mais branco morrendo e sendo ferido por conta do fascismo do que negros, já que são a maioria entre a esquerda, por exemplo. É aquele papo já dado: se tirassem os negros das estatísticas de violência, o Brasil nem ficava tão violento assim.

Se o racimo, e racismo entendido como sobreposição cultural e eliminação de qualquer diferença, vai fazer o homem branco atacar seus diferentes, quando isto recai sobre os negros, isso ganha o aval para todo tipo de violência descabida. A white bixa até sofre homofobia, mas raramente com o mesmo grau de violência que a preta. A pauta delas é união civil, o nosso é direito à vida! Daí que o que os movimentos lgbtqicedalho, feminismos, esquerdas, ambientalismos e por aí fazem é computar nossas mortes nas suas estatísticas a fim de usarem nossos corpos como capital de negociação. Quem senta à mesa são eles, quem vai pro saco somos nós!

Por todas essas razões que se pautar por gênero para se compreender individualmente ao invés de raça nos faz reproduzir racismo entre nós. Daí que, pra lidar com isso, vamos ter que lançar mão da interseccionalidade para lidar com a nossa condição de bixa preta e, com isso, embaralhar toda a estrutura de opressões, poderes e domínios ao qual estamos inseridas e confundir as coisas.

Amanhã eu volto para entrar no objetivo desse texto todo, que é falar melhor sobre essas vantagem racial que a bixa preta acaba tendo sobre o homem negro.

"Devan", 2014 (Jordan Casteel)

3. +++ Tomando PEP +++

Mas o que assumir uma outra identidade prioritária à negra permite? Qual a grande vantagem racial em jogo?

A vantagem é justamente em não estar na linha de frente do genocídio que incide majoritariamente sobre o homem negro. Sem falar que fugir dessas características que estigmatizam a masculinidade negra faz com que os negros cada vez mais se socializem segundo os estigmas da feminilidade na sociedade racista e patriarcal que os brancos construíram. Isso não tem a ver com sexualidade, necessariamente.

Pensem aí que o estigma de mulher barraqueira vai cair sobre a mulher negra. Um estigma de “agressividade” e “irracionalidade” do homem negro. Pensem aí, por exemplo, sobre o fato das travestis negras mais perigosas serem justo aquelas que sabem jogar com as regras da rua. E a rua é um lugar eminentemente negro e masculino. Ou seja, tudo negro que é desvalorizado nas outras identidades é por serem associadas a alguns dos estigmas que recaem sobre o homem negro, como já explicado na primeira parte deste texto. Não por acaso, qual mulher e travesti que vai ter mais passabilidade? Aquela que melhor se adequar aos modos da mulher branca cis, lembra? A que está em algum grau entre a delicada e implacável. A mulher branca, esta companheira leal e incapaz de ameaçar o poder do homem branco na estrutura racial que organiza nosso mundo por mais feminista que venha a ser.

Infelizmente, muito infelizmente mesmo, ser uma bixa preta, dentro desses parâmetros e referências do que vem sendo feito para construir sua performatividade e subjetividade (que eu tratei lá na segunda parte) acaba sendo uma forma de emulação da mulher branca e emasculação da sua masculinidade negra como estratégia para fugir do estigma de homem negro. Com isso, a bixa preta se mostra mais inofensiva perante o racismo e o patriarcado que deriva dele. Alguém que os civilizados brancos e negrescos podem chegar perto porque ela morde. Sendo a mulher branca a leal — nem sempre fiel — companheira do homem branco pela via da civilidade e docilidade, emular sua subjetividade significa emular lealdade ao próprio homem branco pelas mesmas vias da civilidade e docilidade que ela.

Entretanto, não dá pra cair no engano de que os ganhos que a mulher branca obterá por sustentar a estrutura racial, mesmo que com retoques feministas, vai ser o mesmo para a bixa preta ou a mulher negra que se propõe ocupar o lugar da sinhá no esquema. Nesse Contrato Racial que a gente está condicionado a viver, a mulher branca trabalha pela manutenção do privilégio racial dela e de sua família como uma rainha do jogo de xadrez. Sendo assim, ser uma de suas emulações negras nos garente conquista de vantagens individuais ao ter acesso a alguns desses “bens raciais” como direito ao consumo e cargos em alguma instituição branca. Mas o contrato é muito claro em determinar que nosso ganho individual não vai ameaçar o esquema. Na manufatura racial da BR-Cólon, todo ganho dado aos brancos é lucro. Já, aos pretos, é suborno.

No caso das bixas pretas, isso significa que ela não sofrerá com a homofobia ou qualquer outra opressão de classe ou origem territorial que condicione sua existênca? Claro que vai! A mulher branca é oprimida pelo patriarcado no qual está inserida, lembram? Mas vamos concordar que parece até um cálculo que mais cedo ou mais tarde a gente vai fazendo pra sobreviver. Parece que chega uma hora que a gente se toca que vale mais a pena lidar com a homofobia do que com o racismo. Afinal, vai ter white gay ali e, nesse mundo, onde tem branco, tem ganho. Por isso não me surpreendo em ver bixas pretas terem mais disposição para fecharem com as whites racistas do que fechar com homens negros que reproduzem homofobia. Contingente de homens negros, esses, que duvido serem a maioria. Eu acredito que esse cálculo é mais intuitivo do que deliberado. Nem por isso menos zoado.

"Ato", 2014 (Jordan Casteel)

Nessa encruzilhada, a vantagem que bixa preta– quando está nesse mood white bisha do tipo preta — tem sobre o homem negro é mais acesso aos recursos da sociedade branca. É a mesma lógica do colorismo: negros claros terão mais acesso aos recursos do centro que negros escuros. Negros ricos vão ter mais vantagem social que negros pobres. Negros escolarizados, em relação a alfabetizados. Negros do sexo feminino em relação ao masculino e por aí vai. Quanto mais perto da sinhá, mais longe do pelô.

Tem um lance que muita bixa preta gosta de falar, que é sofrer homofobia pelo feminino que há nela. A leitura é que a sociedade é machista e, portanto, vai violentar toda forma de “desvio comportamental” da macheza que elas apresentem. Veja bem, eu ainda estou para conhecer um preto, uma preta ou pretx de qualquer característica ou identidade que seja e que sofra mais por ser qualquer outra coisa que não por ser negra. Afinal, você consegue “disfarçar” sua sexualidade e gênero de acordo com os signos que manipula para transitar na sociedade. Duvido “disfarçar” sua pele e seus traços, por mais maquiagem e fotoshop use.para manipular sua imagem.

Mas, mesmo que a origem da homofobia seja o machismo e misoginia que homens negros venham a reproduzir (e reproduzem sem ganhar nada com essa reprodução, vale destacar!), é bom lembrar que machismo é um produto do racismo. Pois a aniquilação da diferença e domínio do que é o outro é algo próprio dos modos culturais brancos. Isso também eu e o bonde do Òkòtó já escrevemos por aqui. Então dizer que está sofrendo pela feminilidade é o mesmo que dizer que traficantes são assassinados por policiais pretos por conta de serem traficantes, quando o fato de serem traficantes é engodo para serem assassinados da mesma forma que ser bixa é um engodo para a gente ser violentado. Então a promessa de escapar da linha de frente do genocídio negro que uma emulação sexual e de gênero da mulher branca nos faz é frustrada em absolutamente todos os sentidos. No fim, esse cálculo de que vale mais se pautar por gênero do que por raça acaba sendo um tiro pela culatra. É a famosa situação de se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O que o racismo não te mata pela sua condição de homem negro (e me refiro ao estigmatizado), ele te mata pela condição de negro do tipo embranquecido. Pro racismo, não existe viagem perdida.

Com isso eu quero dizer que as bixas pretas precisam deixar de existir ou entrar num ciclo de “perdão por ser viado”? Claro que não! Que elas precisam abandonar suas performatividades “não-cis” e adotar uma normatização e padronização que o patriarcado branco impõe sobre o corpo dos homens negros? Isso seria contraditório a qualquer um que se paute por raça. Pois o berço civilizatório dos negros, o berço africano, ele se caracteriza por estimular a diversidade na unidade. Diversidade que não é só fenotípica, mas também espiritual e cultural. E isso passa pela sexual. Então toda vez que a gente vê gente entendida de negritudes, afrocentriciades ou panafricanismos da vida defendendo que os africanos aderem às correspondências ‘homem/mulher’, ‘macho/fêmea’ e ‘masculino/feminino’ e qualquer desvio disso é traço de embranquecimento ou alienação, a gente precisa questionar a validade desse ponto de vista. Da mesma forma que a homossexualidade, a travestilidade e a transexualidade negras estão colonizadas por referenciais brancos ou embranquecidos, a própria cis-heterossexualidade também estão. E a grande dificuldade e desafio da nossa comunidade é como se descolonizar disso sem recair em machismo, homofobia e misoginia, de um lado, e emasculação/castração das masculinidades negras, de outro. Em última instância, não se descoloniza uma comunidade reproduzindo o racismo que oprime esta comunidade.

Até porque, transexualidade, homossexualidade e homossexualidade dentro da comunidade negra é estruturada pelo racismo. E a gente ainda vai precisar estudar a fundo o quanto essas orientações sexuais e performances de gêneros são produto das opressões sexuais que o racismo exerce sobre nossos corpos e subjetividades desde a escravidão. Fica aí o vespeiro para quem quiser mexer junto comigo.

O que eu quero com isso tudo isso é botar na mesa que, assim como a existência de homens negros héteros que reproduzem homofobia e machismo se deve a terem sua masculinidade colonizada pelo padrão de homem branco que lhe é imposto a seguir para resgatar sua dignidade humana (quando jamais conseguirá!), as bixas pretas também estão com sua masculinidade colonizada por referenciais e modelos brancos ou embranquecidos. Do contrário, só haveria vida fora da heteronormatividade se fosse nos termos que os brancos mesmos dizem existir em seus filmes, seriados e novelas. Afinal, não é disso que a gente se alimenta desde a barriga das nossas mães? Assim, tanto um quanto o outro acabam trazendo toxidades para a comunidade sempre que colocam qualquer uma das suas branquices (machismo/feminilidade branca) antes da sua negritude.

Não se esmerar nesses modelos e reproduzir esses padrões deveria ser uma preocupação para toda pessoa negra homossexual ou não-binária que tenha um compromisso prioritário com o povo preto, independente da sua condição de sexualidade e gênero. Mas eu não sou burro e sei que boa parte das bixas pretas se centram no que sentam. Aí eu não posso fazer nada. Podem dar piti, ataque de faniquito, soltar shade no twitter e dizer que não é isso, que discorda e talz. Discordar por discordar, não gostar ou não entender não diz nada. A gente tá aqui para dialogar com quem bota raça antes de todos os ditos marcadores sociais em função do povo preto. E não coisas como essa falácia teórica de intersekyssaum que vai fazer “raça, gênero e classe” terem a mesma importância, quando sabemos que nenhuma mulher, bicha ou pobre branco vai abrir mão do seu poder racial para lucrar oprimindo qualquer preto que seja.

"Jireh", 2013 (Jordan Casteel)

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Dessalín Òkòtó
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Querendo ser educador para melhorar minha comunidade, sentei para aprender e agora levanto para também ensinar.