Diabo Coxo

Fiu Carvalho
revistaokoto
Published in
4 min readJun 12, 2021

Motivo é o que não falta para lembrar e contar a história de Luiz Gama, tanto pelo trabalho como jornalista, poeta e rábula — quando não tinha-se o título de advogado, mas comprovadamente tinha-se o conhecimento jurídico — num período em que o preto ainda era visto como mercadoria, logo desumanizado, quanto pelo trabalho como abolicionista quando leis escravistas ainda vigoravam forte. Luiz Gama, deve ser celebrado também por fazer os branc’os passarem raiva.

Imagem: capa do nº 26 da revista Bahia Ilustrada, janeiro de 1920. Coleção Emanoel Araújo.

Em um dos raros casos de exceção que confirmam a regra, Luiz Gama conseguiu se integrar razoavelmente bem entre branc’os, acreditando na ideia de nação brasileira mesmo sem negar sua origem africana e, ainda assim, usado seu talento, seus contatos e influencia para beneficiar a luta pela libertação de pretos escravizados e fez isso se valendo de uma astúcia que é bastante preta.

Mesmo só convivendo com a mãe, Luiza Mahin, até os sete anos e nunca voltando a encontra-la, é inegável a influencia dela na formação e na trajetória aguerrida que o filho viria a construir. O próprio poeta conta em cartas sobre o carinho que sentia por ela, mulher africana que ao ser trazida para o Brasil não se deixou abater e se engajou na formação de terreiros, na manutenção da cultura preta e em levantes de escravizados em busca de sua liberdade. É esse legado que Luiz Gama leva a diante na sua vida adulta.

Do pai o que se sabe é que vinha de família portuguesa, dita nobre, e o vendeu como escravizado para pagar divida de jogo. O ranço merecido era tamanho que Luiz nunca revelou seu nome, nem mesmo a amigos próximos. Esse ponto nos lembra de que na hora do sacrifício, branc’os são muito eficientes em fazer a escolha deles.

Arte: Lisimba Dafari Òkòtó

O que se sucedeu após essa situação hedionda poderia ter quebrado Luiz Gama, mas ao contrario disso, alimentou uma vontade de vida e de luta que o fez se manter atento as oportunidades. Do estudante que se hospeda na casa onde ele servia e o ajudou a se alfabetizar, da boa vontade do professor de direito e chefe de polícia que o protegia, ao acesso à biblioteca da Academia de Direito de São Francisco (Faculdade de Direito) que, apaixonado pela leitura, o possibilitou o estudo e formação em direito. Nada disso seria possível se não houvesse ali um espírito combativo.

Foi através do jornalismo que encontrou uma porta para criticar a escravidão. Fundou o jornal “Diabo Coxo” que trazia não só textos recheados de apontamentos a hipocrisia da sociedade, mas também caricaturas políticas debochadas, possibilitando que analfabetos também entender e compartilhar aquele conteúdo. Midiático, usava os jornais para expor seus debates com figuras públicas — branc’as, de certa forma transformando aquilo em novela e atraindo interesse para a causa abolicionista.

Usava sua perspicácia para encontrar ilegalidades dos escravistas e falhas na lei que o ajudassem a conquistar a alforria de africanos e descendentes, explorando também uma “síndrome de europeu” instalada no sistema judiciário da época, que se baseava nos valores de liberdade, igualdade e fraternidade que vibravam forte no continente branco, resgatando a aplicação da Lei Feijó, de 1831, a famosa “lei para Inglês ver” na libertação, dobrando o judiciário com a sua própria lei e demonstrando ter conhecimento muito mais amplo que os doutores que portavam diploma.

Corajoso e ousado defendeu e ajudou na libertação de mais de 500 negros criminosamente escravizados, como ele mesmo os identificava, usando declarações escandalosas para a época como a famosa frase “o escravo que mata o senhor, seja em que circunstâncias for, mata em legítima defesa”. A reação foi tanta que a audiência precisou ser interrompida (tá passada?).

Era um homem preto inserido num mundo branco e fez questão de lembrar disso, “nunca se esqueçam que quem fala aqui é um negro” escreveu certa vez. Sendo considerada uma das primeiras, se não a primeira, voz negra a ser publicada na diáspora brasileira. Trazendo também a mulher negra como musa de seus poemas e zombando os mestiços que se consideravam brancos e esqueciam, ou tentavam apagar, sua origem africana.

Integracionista, republicano e maçom, Luiz Gama não escapa da condição humana ao ter suas contradições, mas vale aqui pensar que ainda que com elas, fez tanto pelo povo preto e deixou um legado de luta que deve nos servir de inspiração e ser celebrado.

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