Disposição escrava, disposição para o serviço

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5 min readJul 8, 2021
Por Iza Oliveira

Marxistas não têm o monopólio da crítica do trabalho capitalizado, nem detém a patente da ação política das pessoas que trabalham. Feministas não têm o monopólio da crítica do gênero ou do sistema sexo-gênero, nem detém a patente da ação política das pessoas do gênero feminino ou de sexualidade não-hetero. Não somos nós os endividados nessa história. Não temos dívidas com essa gente.

Não é por falta de quem passe a visão que essa ficha, para tantos, custa a cair. Um dos maiores estragos dos séculos de escravização foi essa disposição perene de se dobrar à visão e à fala dos descendentes dos seus escravizadores, incutida em pessoas pretas. Daí porque qualquer tipo de chantagem política e falsificação grosseira da história —da mais pregressa a mais recente — aciona essa disposição de se curvar para servir aos rentistas da nossa desgraça, com todo custo pela negligência de si mesmo, dos seus e das gerações posteriores. Uma pesquisa recente revelou que há hoje mais pessoas pretas engajadas com as políticas feministas do que gente branca, lembra? Então, é a atualização dessa disposição escrava.

Fanon foi um dos que destrinchou esse comércio de imagens e de transações políticas. Talvez da forma mais concisa e emblemática quando disse: “o negro não é um homem”. Com isso, nos deu a fórmula política do arranjo das coisas nesse mundo cão que conhecemos: o negro não é um homem-cidadão-trabalhador e muito menos proprietário, afinal não existe por e para si mesmo. O negro existe por e para o branco. É como criação, como criatura do branco.

Pode possuir um registro que ateste que é do sexo masculino e de nacionalidade tal, mas, para todos os efeitos, não é um homem. Não é um cidadão. É quem mais trabalha, nas piores condições, mas não é um trabalhador. “Não atira, é trabalhador!”, gritam as famílias nas favelas contra os assassinos fardados. O que acontece? Diariamente, a bala chega. Matam os com e os sem carteira de trabalho.

Vale para a mulher preta: ela não é uma mulher. Não é cidadã. Não é trabalhadora. Lá pelos anos 1800, Sojourner Truth, vendo as brancas se articulando em torno da política do gênero feminino, o feminismo, nos estados unidos sacou o jogo. Tia Truth enumerou situações de trabalho servil, humilhante, explorado por mulheres e homens branc’os, e, nisso, perguntou, “ué, eu não sou uma mulher?” A resposta é não. Tia Truth compreendia isso.

Pessoas pretas temos, nesse arranjo branco de coisas, uma condição de (in-)humanidade a encarar e transpor. Nisso, estamos por conta própria. Não há a quem recorrer senão a nós mesmos e aos nossos. Demandas fracionadas no varejo da classe, do gênero, da sexualidade, da territorialidade etc. não vão responder à situação das pessoas pretas, ainda em condição de sequestro dos dois lados do Atlântico. E isso nenhum(a) autor(a) branco(a) vai lhe ensinar. Não o farão, porque isso vem lhes garantindo mãos, braços e mentes pretas em eterna disposição escrava. Existe o atacado da humanidade regido pelo supremacismo branco, que antecede e excede qualquer desses varejos de classe, gênero, sexualidade, território etc. “Não existe capitalismo sem racismo” — nos disse Malcolm —, é, de novo, sobre essa anterioridade. É sobre esse excesso. Esse atacado anterior trata de condição e infraestrutura de povo. E, em se tratando de condição de povo, significa que é anterior também — e excede — a lógica da discriminação e do preconceito. Entende? É um lance bem mais subterrâneo.

No fim das contas, o que está sendo dito é que tanto a materialidade quanto a imaterialidade da ordem supremacista branca é a violência anti-afrikana. Duvida? Veja o exemplo dado pelos chineses em sua ascensão recente na política internacional. Faz décadas que chineses estão, como brancos, saqueando a Áfrika, minando toda a sua infraestrutura cultural, espiritual, social, política e econômica dos Povos Pretos. Recentemente, até no ramo sujo da exploração da fé dos Afrikanos eles se lançaram. É a fórmula política supremacista branca, muito bem aprendida mesmo por povos não-brancos. Não se engane, nem isso é, em si, uma novidade. Os povos originários na América do Norte, os intitulados pelos brancos invasores como as 5 tribos civilizadas — ou seja, assimiladas à ordem dos brancos —, entraram no jogo e escravizaram Afrikanos traficados para os cantos de lá (veja uma live recente nossa contando parte dessa história no quadro Histórias pr’Acordar).

Você, pessoa preta, pode correr pros filões marxistas e feministas com todo empenho e sinceridade de coração. Reencenando seus antepassados e ignorando a lição, que nos erros e descaminhos, eles nos deram, você vai lá correr para dar de cara no chapisco da desumanização racial, que rege qualquer categoria política, como rege todo e qualquer espaço e instituição erguida por brancos, com trabalho servil dos pretos e não-brancos.

Algumas indígenas dos cantos de cá das américas, especialmente as que não estão nos partidos, entenderam esse jogo. Elas dão provas disso quando botam pra correr as feministas, que, a pretexto de realizar trabalho de campo, vêm às comunidades indígenas reivindicar uma “patente” (feminista) sobre o trabalho político que essas líderes conduzem junto ao seu povo. “Isso que vocês estão fazendo chama-se feminismo e vou lhes ensinar porquê e como realizar esse programa”, dizem as brancas e as não-brancas convertidas, do alto da sua arrogância desumanizadora e da sanha por ter sempre quem lhes sirva e se curve ao que dizem. Diferente dessas líderes indígenas atentas a essas formas renovadas de sequestro político-cultural, as pessoas pretas estão aí orgulhosas por cuidar da casa dos seus agressores, por proteger seus cercados, por tocar as agendas de suas instituições, enquanto a casa dessas pessoas pretas é bagunçada, profanada e destruída.

Honrar nossa ancestralidade é um dos programas que têm o propósito de apoiar esse processo de abandono dessa maldição que é a disposição escrava enterrada nos cantos profundos da cabeça e do coração dos pretos. Está vinculado ao dever de conhecermos a história milenar dos Povos Pretos dos quais descendemos com o fim de cultivarmos tudo o que é preciso para dar continuidade a esse legado cultural e político. Nossa própria existência, como a dos nossos ancestrais, depende disso. É esse, sim, o serviço através do qual vamos refazendo a nossa dignidade e a nossa humanidade, via resgate da nossa herança cultural milenar.

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