Do cerco fechado da sobrevida

Akínwálé Òkòtó
revistaokoto
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11 min readFeb 11, 2021
Ilustração de Izaias Oliveira

Estava lendo a Autobiografia de Malcolm X, a edição da Diáspora Africana de 2017, pensando a escrita deste texto, quando o telefone tocou. Era a esposa do meu tio do lado materno, que raramente me liga, embora mande mensagens com alguma frequência. Com uma voz embargada, ela me disse que meu primo, de 19 anos, havia sido executado, junto com mais uns 9 jovens da idade dele e alguns adolescentes de 13 e 15 anos, por PMs. Pediu que eu cuidasse de transmitir a informação à minha mãe. No hospital onde os corpos começaram a ser depositados para identificação, minha prima ainda veria cerca de mais 10 corpos chegando para se juntar ao do filho dela e dos outros nove. Foi nessa atmosfera familiar que me vi, nos dias seguintes ao telefonema, com a tarefa de escrever sobre Malcolm X. Ele, um homem Preto que, aos 19 anos, poderia ter tido um fim idêntico ao do meu primo, era perfeitamente consciente disso.

Betty Shabazz, Malcolm X, Muhammad Ali, Attilah Shabazz, Qubilah Shabazz, Ilyasah Shabazz.

Meu primo e Malcolm viveram infernos semelhantes, que aproximam os guetos do norte deste continente às favelas, comunidades pretas e becos do sul. Ambos desceram fundo no que Malcolm descreveu como um “buraco espiritual, mental e moral” que brankkkos e seus cúmplices cavaram para o despejo de grandes Povos Afrikanos reduzidos a uma massa negra disforme, conformada e moldada pelas mãos imundas dos brankkkos cristãos — e islâmicos. Nós, aqui em família, falhamos em oferecer meios para que meu primo se reerguesse. Esse, porém, não foi o caso da família de Malcolm. Organizados no interior de uma organização política, cultural, espiritual Preta, os irmãos de Malcolm conseguiram acender algo ali no seu espírito de maneira a que ele se reerguesse e se reconduzisse, por si mesmo, ao seu grandioso caminho de propósito, um caminho que o colocaria entre os mais honrados e poderosos filhos de Mãe-Afrika já conhecidos no mundo.

Um certo desespero que nos acompanha na leitura da Autobiografia de Malcolm X acredito vir da constatação de que, passados em breve 100 anos desde o nascimento de Malcolm (1925), tudo ali em sua trajetória até as primeiras duas décadas de vida, quando Malcolm foi preso — em um contexto em que poderia ter terminado assassinado por policiais — parece a muitos de nós hoje absurdamente familiar e contemporâneo. É uma constatação dura sobre o quão pouco avançamos coletivamente. É como se pudéssemos nos ver e nos ouvir na condição de sono profundo de que fala Malcolm, um sono induzido pelas máquinas de propaganda política brankkkas — imprensa, televisão, empresas, igrejas, partidos e academia. Um sono embalado, é preciso dizer isso, também pelos “líderes pretos” orgulhosos de sua coleira mantida firme, presa por pulsos brankkkos. É essa a “liderança” que trabalha pela manutenção desse atoleiro espiritual-moral-mental onde chafurda uma população negra, para dali, da beira do valão, esses mesmos “líderes” pleitearem migalhas materiais e simbólicas dos patrocinadores, idealizadores, executores e beneficiários da humilhação e do assassinato dos nossos primos, filhos, irmãos, tios e pais. São eles e elas os administradores e rentistas do grande buraco, do vala profunda negra.

Como um sobrevivente qualificado pela força das circunstâncias, sim, mas muito mais pela força do seu espírito, Malcolm fez da descida ao inferno uma oportunidade para desenhar para nós a arquitetura do buraco. No resgate dessa força espiritual viva em sua linhagem familiar (o pai de Malcolm era membro ativo e altivo da UNIA de Marcus Garvey, assassinado pelo ódio brankkko) e dando a ela sentido e direção pelo convívio com o seu Povo Preto, Malcolm deixou para nós o perfil das figuras todas desse inferno. Traçou a psicologia dos demônios, suas legiões e dos almas-vendidas que lhes servem. Não deixou escapar uma personagem sequer desse submundo tornado “negro”, feito de plataforma para projeção e realização de fantasias doentias de um paraíso que brankkkos constroem diariamente, ativa e passivamente, em cima de carne preta morta e morta-viva. Morta e morta-viva, pois no diagnóstico de Malcolm, coletivamente, os pretos desse lado do Atlântico estão mortos moral, mental e espiritualmente.

No inventário que Malcolm nos deixou estão lá descritos todos os covardes: professores primários, agentes do conselho tutelar, as famílias sem-cor que assumem a custódia e adoção de crianças pretas, igrejas, a polícia, o exército, todo um conjunto de instituições da supremacia brankkka que dividem a responsabilidade pela execução de seu pai, Seu Earl Little, pela internação de sua mãe, Dona Louise Little, em uma instituição manicomial e pelo sucessivo desmoronamento daquela Família Preta. Foi essa, frequentemente é exatamente essa, a linha de frente institucional cuja missão tem sido garantir que toda Família Preta tem as mínimas chances de vingar. Em seguida, no quadro autobiográfico de Malcolm, vem as figuras da rua e da noite, no meio de quem Malcolm vai desenvolver e afinar tecnologias de sobrevivência: aliciadores de menores, varejistas de mercado de droga, cafetões e cafetinas, todos, de uma forma ou de outra, com um braço lá em famílias e instituições brankkkas, de onde tiram os meios para uma subsistência miserável. Já no mapa dividido pela linha de cor, de um lado, está uma “cidade negra”, marginalizada, marcada pela violência e morte iminentes e pela indignidade humana, do outro, a cidade brankkka, movida pela vida parasitária e degradante das “famílias de bem”, brankkkas, com sua meia dúzia de pretos encoleirados. Com a compreensão profunda do que chamou de “psicologia da selva do gueto”, aliada ao exame da sua trajetória de sobrevivente ao inferno e aos 7 anos de estudo autodirigidos no cárcere, Malcolm não teve a menor dificuldade de desenvolver uma filosofia política própria, de base Preta e orientação Pan-Africana. Tudo isso, sim, com o apoio de sua família e da organização fundada por Elijah Muhammad.

Como um sagaz intérprete sagaz do espírito humano, de suas condutas e dos motivos que o movem, Malcolm compreendia como o medo era o principal inimigo do avanço das pessoas pretas naquilo que lhes compete fazer por si mesmas. O medo incutido pelos brankkkos desde muito cedo, por meio de suas máquinas de propaganda e de violência, nos condiciona a aderir, sem muita defesa, a uma série de mentiras sobre nós mesmos e a fugir a todo custo da verdade, assim como brankkko foge da culpa, da responsabilidade que carrega por séculos dos crimes mais hediondos contra povos não-brancos. Afinal, no fundo, o que o brankkko mais teme é se ver tendo que colher do que pelo mundo ele tão “generosamente” semeou. Pois, como falava Malcolm às Famílias Pretas, “o senhor de escravos os trouxe aqui e tudo do passado de vocês foi destruído. Hoje, não conhecem a sua verdadeira língua. De que tribo vieram? Não reconheceriam o nome de sua tribo se o ouvissem! Nada sabe de sua verdadeira cultura. Nem mesmo conhecem o verdadeiro nome de suas famílias. Estão usando um nome de homem branco! O nome do senhor de escravos branco que odeia vocês!” Com o fogo na voz ele discursava, um fogo que ele mesmo dizia poder sentir e que projetava na intenção de dissipar essa atmosfera de medo que nos mantém nessa posição de ignorância sobre nós mesmos, sobre nossa história milenar brutalmente interrompida por séculos de invasão, saque, sequestro, estupros e desumanização extrema, além do completo desinteresse que mantemos em relação a nós mesmos.

Malcolm tinha total responsabilidade no manejo desse fogo. Íntimo das formas de sobrevida nos guetos, lá onde o grau de inércia política é dado na medida da força do terror militarizado, paramilitarizado, econômico, e da importância dos mercados varejistas de entorpecentes e da fé, pilares do programa político das instituições da supremacia brankkka, Malcolm tinha consciência de que ali estavam pilhas de dinamites que poderiam ser detonadas, ali mesmo, se abordadas de forma displicente. Sabia que ali estavam os Pretos mais temidos pelos brankkkos, porque eram justamente os que menos tinham respeito pelas estruturas de poder dos brankkkos. Não tinham o medo dos brancos, ou não na mesma forma e medida que o têm os Pretos de outros terrenos e demografias. Nas suas palavras, “em poucos minutos, aprendi a ter um respeito muito maior pela combustão humana latente entre os bandidos e seus jovens admiradores que vivem em guetos, em que o branco do Norte isolou o negro, longe dos brancos, por um século.” Podemos estimar que, ao iniciar sua própria organização após seu afastamento da organização de Elijah Muhammad, Malcolm poderia ter realizado no interior dos guetos estadunidenses um trabalho ainda maior do que fez pela Nação do Islã, se não tivesse sido traído, isolado e, finalmente, assassinado. E ele levou essa organização a um patamar inimaginável até a sua chegada.

Sobre a relação dos líderes pretos com o gueto, Malcolm disse: “eu sabia que o grande defeito dos famosos “líderes negros” era a falta de um relacionamento autêntico com os negros do gueto. Como poderiam ter qualquer relacionamento se passavam a maior parte do seu tempo se “integrando” com os brancos? Sabia que os habitantes do gueto tinham certeza de que eu jamais deixaria o gueto em espírito e não me afastaria mais que o necessário. Ainda possuía o instinto do gueto. Podia, por exemplo, sentir se a tensão estava acima do normal numa audiência no gueto. E podia compreender a linguagem do gueto.” Era o caso de um homem em posição de fazer uma aproximação genuína, sem oportunismos, sem interesses em projeção e ganhos pessoais, sem posição de autoridade não assumida e relações de poder díspares não honestamente assumidas, disfarçados com os truques habituais mal encobertos pela retórica sem vergonha do ‘construir junto’, que caracterizam a atuação dos autoproclamados progressistas da esquerda nas áreas de favela e regiões periféricas daqui como de lá. É o típico modo de operar das raposas, que nos descreve Malcolm em metáforas nas suas leituras afinadas das relações políticas do mundo brankkko.

Foi ao fim de uma autoavaliação sincera em relação aos seus recursos e disposições espirituais, políticos, morais, emocionais, que Malcolm decidiu criar sua própria organização nos guetos. “Ao final”, Malcolm fala, “cheguei à conclusão de que a decisão já havia sido tomada por mim. As massas do gueto já haviam me confiado uma imagem de liderança. Sabia que o gueto, instintivamente, só concede essa confiança a quem já demonstrou que nunca o venderá ao homem branco. É claro que jamais tive tal intenção, pois vender e trair os outros era algo que não estava em minha natureza. Senti que era um desafio planejar e construir uma organização que pudesse ajudar a curar o homem preto da América do Norte das doenças que o haviam mantido sob o calcanhar do homem branco. O homem preto da América do Norte estava mentalmente doente em sua aceitação cooperativa, como um cordeiro, da cultura do homem do branco.” Malcolm ainda desenvolve um tanto sobre a dimensão espiritual dessa doença, que nos estados unidos assume uma linguagem predominantemente cristã evangélica, que torna o pensamento dos pretos “vago, nebuloso e confuso”, colocando-os em disposição de espera por uma além-vida mais digna enquanto entubam a brutalidade e a dor da vida no inferno que os brankkkos reservaram, neste plano, aos Pretos. No campo econômico, a doença se faz sentir por uma ilusão de progresso a que os Pretos aderem na medida em que percebem descerem as migalhas, cujo volume oscila de acordo com decisões políticas negociadas no interior da américa brankkka. A doença política faz do Preto um crente fiel à ideia de que ele possa, de fato, se nomear e agir como um negro de esquerda ou de direita, um democrata ou republicano negro; que possa se declarar um liberal negro ou um conservador negro, doando sua parcela de legitimidade a um arranjo político em que concretamente ele escolhe, basicamente, sob os pés de quem ele vai ser esmagado.

Não à toa, Malcolm insistiu tanto em que os Pretos do norte ampliassem o horizonte político para além do quadro dos “direitos civis” e pensassem em termos de direito à dignidade humana, que pode ser entendido como um direito de construir sua própria dignidade humana. Era uma forma de expandir a noção de política para além do doméstico onde se experimenta, lá como aqui, a subcidadania nacional, seguindo na direção de uma noção de política transversal, global e, de fato, Preta. Fundamentalmente, tratava-se de sair do jogo viciado dos direitos civis para a recuperação da nossa própria dignidade humana, em recusa completa a uma forma de “integração” colocada concretamente como política de assimilação e embranquecimento. Trata-se de constituir as condições de respeito aos filhos e filhas da Afrika, internacionalmente. Malcolm já havia aprendido a partir da filosofia do nacionalismo preto que o autorrespeito não pode ser uma demanda política feita a outro grupo racial — Garvey já havia dado essa lição havia décadas por lá. A única maneira de o Povo Preto conquistar algum respeito seria desenvolvendo a capacidade de fazer tudo por si mesmo, como outros grupos de outras raças e cores já vinham fazendo lá mesmo ao norte do continente.

Sobre a dificuldade de articulação política entre o Continente Afrikano e sua Diáspora em fóruns e instâncias internacionais, Malcolm ouviu de muitas figuras políticas não-brancas, em suas viagens pela Afrika e oriente médio que “o negro da américa está tão confuso e dividido que nem mesmo sabe qual é a sua causa.” “Não foram poucas as pessoas, especialmente africanas”, ele conta, “que me manifestaram de várias maneiras que ninguém desejaria ficar constrangido a tentar ajudar um irmão que não dá nenhum sinal de que deseja ajuda… e que parece se recusar a cooperar na defesa de seus próprios interesses. O problema mais crítico dos “líderes” pretos americanos é a falta de imaginação! Seu pensamento, suas estratégias, se é que alguma existe, são sempre limitados, pelo homem branco. E uma coisa que a estrutura de poder americano não quer de jeito nenhum é que os negros comecem a pensar internacionalmente.” Essa é uma realidade que se aplica aos Pretos por todo o continente americano. Essa dificuldade de se imaginar em algum lugar que não debaixo do sapato dos brancos ou de largar de suas mãos imundas se faz mais evidente quando observamos a resistência de pessoas preta em assumir quem são, de onde vem, sem associação com uma ilusão de pertencimento nacional que se mantém na realidade como uma subcidadania degradante marcada por sangue, lágrimas, dor e todo tipo de humilhação contra a memória ancestral e à integridade física do nosso Povo Preto. Uma ilusão política que embala o sono daqueles de nós que não estão sob a mira imediata dos fuzis. A quantidade de filhos e filhas de Afrika paralisados em seus sonhos americanos, brasileiros, colombianos, peruanos, latinos é um dos sintomas dessa doença política que corrói os sentidos e torna nosso terreno, de uma ponta a outra do continente, espiritual, política, cultural, moralmente infértil.

Malcolm X na Nigéria em 1964

Concluo com essas frases do Malcolm na esperança que era a dele que a gente desperte do sono profundo: “Meus irmãos e irmãs pretos, ninguém jamais saberá quem nós somos… até nós sabermos quem somos! Nunca seremos capazes de ir a qualquer lugar, se não soubermos onde estamos!” E que ao acordarmos, a sabedoria profunda, a inteligência e a sagacidade do nosso honorável advogado, psicólogo, professor e diplomata sem diploma, malandro da sobrevivência das ruas e da noite, nos inspire a tomar as melhores decisões e a acertar o passo. Se como ele nos fala, “nos guetos que os brancos criaram para nós, fomos forçados a não aspirar coisas maiores, encarando a vida cotidiana como sobrevivência… E nesse tipo de comunidade, a sobrevivência é o que mais se respeita”, que a gente tenha a dignidade de construir comunidades fora dos limites desse cerco fechado de uma sobrevida que não é mais que uma subvida, uma vida subterrânea, no buraco. A dignidade de construir comunidades de respeito às nossas vidas e à vida dos nossos primos, irmãos, companheiros, tios, pais, avôs. Nessas comunidades nossas a construir, que as vidas se tornem plenas e tenham o poder de se fazer respeitar, custe a quem custar.

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