E essa encruzilhada aí?

Juliete Vitorino
revistaokoto
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5 min readOct 21, 2019

Tem um itan que conta quando Exu ganhou a encruzilhada:

“Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão.

Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.

Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá.

Ia à casa de Oxalá todos os dias.

Na casa de Oxalá, exu se distraia,

vendo o velho fabricando os seres humanos.

Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá,

mas ali ficavam pouco.

Quatro dias, oito dias, e nada aprendiam.

Traziam oferendas, viam o velho orixá,

apreciavam sua obra e partiam.

Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos.

Exu prestava muita atenção na modelagem

e aprendeu como Oxalá fabricava

as mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens,

as mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres.

Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá.

Exu não perguntava.

Exu observava.

Exu prestava atenção.

Exu aprendeu tudo…”

A capoeira tem muito disso, não se ensina capoeira, capoeira se aprende, você observa alguém fazendo e vai tentando fazer até conseguir.

E que maravilha seria se levássemos isso pra vida, se a gente ao invés de ficar esperando o “salvador” — alguém que diga exatamente como tem que fazer fôssemos lá e aprendêssemos a fazer — fizêssemos algo por nós.

Já pensou que louco ser autônomo na sua vida, fazer suas decisões por si só?

Duvido muito que após as observações, Exu foi lá e fez perfeito, mas tenho certeza que cada vez que ele foi fazendo ele foi se aperfeiçoando mais, porque a busca pela perfeição tem que ser constante, pois a perfeição é inalcançável porque a gente sempre pode fazer melhor. O próprio Oxalá, cada vez que fazia as partes dos seres humanos, ia se aperfeiçoando nisso.

Pra mim, esse itan está relacionado com a questão da paciência também. Muitas vezes, a gente quer chegar e já fazer certo, quer chegar e olhar e já fazer do jeito mais bonito. Algumas vezes a gente acha que aquilo ali é o nosso melhor também, mas nunca é, sempre pode ser melhor.

E a paciência nos ensina que as coisas têm seu tempo. Já viu gente que descobre que inhame faz bem pra saúde, compra um quilo de inhame e come tudo no mesmo dia e nunca mais come? Nosso organismo não vai absorver todos os nutrientes de um quilo de inhame. A maioria vai ser jogado fora. Ele vai absorver só um pouquinho. Paciência é também sobre inteligência, de você saber que mais vale você comer 200g de inhame por dia e comer durante cinco dias, do que comer um quilo em apenas um dia.

E o tempo que empregamos nas coisas diz muito sobre de como vamos melhorar:

“Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos.”

Quantos de nós estamos dispostos a ficar dezesseis anos na casa de Oxalá?

Muitos de nós chegamos, ficamos quatro, cinco, dez dias e partimos, achamos difícil demais, achamos que não vamos dar conta e partimos. Muitos começam até a questionar o jeito que Oxalá faz as partes do corpo, começa a discordar só pra dar fuga da casa de Oxalá com a tal da consciência leve rs.

E isso diz muito sobre nós e sobre os lugares que ocupamos, sobre o tempo que dispensamos e sobre as ações que desenvolvemos.

Eu duvido muito, eu duvido tudo. Que alguém ocupe um espaço que tenha cem por cento de concordância com todas as ideias e todas as pessoas. Duvido que quem ocupe partido político, coletivos e academias concorde cem por cento com tudo, isso não existe. No entanto, as pessoas entendem que ficar ali, que os motivos que te levou até ali são maiores que as discordâncias. Contudo, essas mesmas pessoas seriam as que dariam fuga de um espaço preto. Porque ocupar espaços brancos e discordar das ideias: ok, mas discordar de espaços pretos e ocupar: jamais! E isso diz muito mais sobre sua disposição quanto a luta pela sua raça do que pelo espaço que você largou.

“Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio, não tinha profissão, nem artes, nem missão.

Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.”

Imagem retirada da internet

Essa parte é muito importante, porque Exu passou dezesseis anos na casa de Oxalá, porque Exu não tinha nada a perder, nós povo negro em um país que quer nossa morte física e subjetiva, que nos mata todos os dias de diversas formas, também não temos nada a perder, enquanto nós não tivermos nossa humanidade respeitada também não teremos nada a perder, mas a gente ganha um diploma, um cargo, uma sentada no sofá da Fátima Bernades, um edital, uma consultoria, um lugar na mesa e ai a gente acha que tem algo e começa a temer perder esse algo. Coisas que são dadas pelos brancos e que a qualquer momento pode ser tirada, essa satisfação que aprendemos a ter ao longo dos anos com migalhas ainda vai nos manter nesse lugar por muito tempo. Eu fico imaginando o quanto esse jogo é divertido para os brancos.

“Exu trabalhava demais e fez ali sua casa,

ali na encruzilhada.

Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa.

Exu ficou rico e poderoso.

Ninguém pode mais passar pela encruzilhada

sem pagar alguma coisa a Exu.”

Mas, esse itan é também sobre recompensas, só quem está disposto a fazer o mais difícil, a doar mais tempo tentando fazer e aprender do jeito certo, só quem está disposto a pagar o preço que ninguém está disposto a pagar, disposto a perder o que na verdade não se tem, ganhará o que ninguém ganhou, chegará onde ninguém chegou.

Esse itan é sobre muitas coisas, uma delas é sobre a gente entender que ninguém ensina nada a ninguém, as pessoas só aprendem quando elas estão dispostas a aprender, e que quando alguém está disposto a aprender algo, por menos recursos que ela tenha, ela o fará, ela aprenderá, ela dominará essa encruzilhada.

Imagem retirada da internet

___________________________________________________________________Nota: Itan retirado do livro Mitologia dos Orixás.

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